Sobre racismo e prateleiras

Seguimos plenos de responsabilidade, no meio do assassinato de Beto Freitas, essa catástrofe-síntese de nossas duas últimas obras: racismo e supermercadismo. Enquanto puder, faremos lentes. Não há mais espaço para desculpas, só é daltônico quem quer.

Por Breno Castro Alves
Newsletter da Elefante

 

A cena é catártica. O vídeo exibe uma jovem humana não identificada que atravessa um corredor do Carrefour Pamplona, em São Paulo, seu braço esticado impiedosamente lançando mercadorias ao solo plaplaplaplaplaplaplá, então corta a cena e logo se vê uma grande mancha de ketchup no chão do mercado detonado, aquela bagulhada de produto caído sob o grosso pó branco do extintor químico.

Este texto é nossa pífia resposta ao assassinato de João Alberto. As cenas do crime são terríveis. Nós aqui da Elefante e, acreditamos, todo ser humano vivo, morremos junto com a barbárie do supermercado e respiramos com a guria que esvazia a prateleira no braço, quebra produtos que valem quase para acertar, finalmente, onde mais dói nos acionistas: na narrativa-Carrefour.

É uma tragédia clássica. Desgraça anunciada, na véspera do enorme 20 de novembro, Dia da Consciência Negra, quando o pequeno Carrefour lançaria seu Manual da Diversidade, olha que fofa a megacorporação transnacional predatória propondo perfumaria AO MESMO TEMPO que assassina homens negros na porrada.

“Caso isolado de terceirizada”, dirá o centrista se sentindo muito inteligente, e de hoje para sempre você poderá sorrir de lado e responder com este link feito pelo r/brasil no Reddit, que organiza a linha do tempo dos DEZESSETE “casos isolados” do Carrefour — e contando, a página tem dois dias de vida enquanto este texto é redigido.

Toda essa situação nauseante coloca a nossa Elefante numa perspectiva única. Pois, veja, os dois últimos livros que lançamos foram #Vidas negras importam e libertação negra e Donos do mercado. O primeiro radiografa o racismo estrutural dos Estados Unidos, de suas sementes até o movimento #BlackLivesMatter, enquanto o segundo organiza inúmeras histórias terríveis de Carrefour e Pão de Açúcar, demonstrando como essas corporações expressam violência por todos os lados — exceto no lugar de gente de feliz bizarro da propaganda e daquela musiquinha merda.

Sim, estamos putos. Para dar vazão à energia, pedimos contexto para Victor Matioli, repórter do site O Joio e O Trigo que, junto a João Peres, editor do portal, escreveu Donos do mercado.

 

Supermercadismo

Donos do mercado relata o caso de um jovem negro pego afanando bifes. Carregado para a salinha da tortura (todo supermercado tem uma salinha da tortura), apanhou e levou choques elétricos. Tudo filmado pelos seguranças, e o vídeo acabou nas redes sociais. Eram terceirizados da Comando G8, nome que cabe mais em filme de Hollywood do que no local onde fazemos nossa feira.

O torturado, alguém quer adivinhar a cor? Negro. Nem o centrista se mexeu pra responder outra coisa. Todos já sabíamos. Os seguranças, muitas vezes ex-policiais militares — ou até PMs de folga, como no caso de um dos seguranças que assassinou Beto Freitas no Carrefour de Porto Alegre — reproduzem nos supermercados a lógica da atuação ostensiva da corporação nas periferias das capitais. Queremos deixar aqui registrado que a maravilha da nossa Constituição Federal diz, em seu artigo 37, inciso 16, que policiais militares não podem acumular cargos remunerados — como chefiar empresas de segurança.

Matioli relata que há muita violência voltada contra os próprios funcionários das redes de supermercados, sobretudo de Carrefour e Pão de Açúcar, os alvos preferenciais de Donos do mercado. Os agressores são os mesmos: seguranças que fazem parte da equipe de “prevenção de perdas”, os braços truculentos das corporações, ambas controladas por empresas francesas.

A situação desses trabalhadores também é péssima, assim como de todos os outros terceirizados. Anônimos e invisíveis nas lojas, com uma rotatividade de 30% a 50% por ano. Em 2019, juízes do Tribunal Regional do Trabalho de São Paulo caracterizaram como “selvagem” a relação do Pão de Açúcar com suas terceirizadas — e autuaram a rede em R$ 2 milhões (mas a multa foi reduzida depois para R$ 500 mil).

 

#VidasPretasImportam

Tudo isso clareia a perversidade desses supermercados. Enquanto isso, as afiadas lentes de #Vidas negras importam e libertação negra, de Keeanga-Yamahtta Taylor, nos ajudam a ver o racismo estrutural dos Estados Unidos, de suas origens até o #BlackLivesMatter. Keeanga é professora de estudos afro-estadunidenses na Universidade Princeton e ativista da linha de frente do movimento negro.

No Brasil, o #BLM deu frutos à maravilhosa #VidasPretasImportam, ação gigante convocada por Pagú, autodeclarado provocador, curador de arte e urbanista. O grupo fechou a Avenida Paulista e meteu tinta no chão na maior, durante a noite, e a avenida mais renomada do país passou a oferecer mais catarse a quem interessar.

Então voltamos à Keeanga. Seu livro comprova como os playboys brancos estão há séculos pilhando, com ou sem sutileza, as vidas e riquezas de nossos irmãos negros. Ela demonstra como seu país criou uma série de estratégias para efetivamente manter a população negra submetida. Um deles se chama daltonismo racial, ou colorblindness, mecanismo de consciência onde o humano, normalmente branco, se declara pós-racista, aquele sujeito que até tem amigos negros, vê negros em posição de poder, até o presidente dos EUA já foi negro, hoje é laranja, então essa coisa de racismo ficou nos livros de história.

Não é nada sutil quando o presidente de seu país se faz daltônico para não ver racismo, como fez nosso miliciano-em-chefe. “Como homem e como presidente, sou daltônico: todos têm a mesma cor. Não existe uma cor de pele melhor do que as outras. Existem homens bons e homens maus. São nossas escolhas e valores que fazem a diferença.” Em #Vidas negras importam e libertação negra, Keeanga destrói argumentos desse tipo: negar o racismo, como também fez o vice-presidente Mourão, é uma estratégia manjada para sustentar o supremacismo branco.

Usaremos, também, estratégia nada sutil. Sabia que alguns tipos de daltonismo podem ser curados? Você precisa de lentes especiais, mas é possível, como demonstra este vídeo gringo. (Pedimos desculpa pelo breve merchan metido aí no meio, ele se justifica porque temos certeza que você é um ser humano desperto e chorará junto com o velhinho que vê cor pela primeira vez.)

Sintomático, também, que num vídeo de tecnologia médica de ponta há zero pessoas negras. Daltonismo racial tem raízes profundas e é mais difícil de curar.

Nós, também, estamos no ofício de fazer lentes. Uns calhamaços assim de papel bonito, capazes de transformar a maneira como seus usuários enxergam o mundo e, esperamos, mais democráticos que os óculos do filme sem pessoas negras, pois, vejam:

Atravessar Donos do mercado é compreender toda a estrutura violenta que começa pela brutalização e reorganização dos nossos agricultores, exigências absurdas existentes apenas sob o duopólio Carrefour-Pão de Açúcar, que com a mesma eficiência moe agricultores e trabalhadores: “57% negros”, festeja o liberal que não leu este livro; tivesse lido, jamais acreditaria no lugar de gente feliz.

Por sua vez, #Vidas negras importam e libertação negra traz intermináveis exemplos de como o racismo se tornou lei, entranhou na cultura e no Estado dos Estados Unidos, seguindo lá até hoje, cada vez mais sofisticado. Em algum lugar deste texto há a esperança de que o livro de Keeanga funcione como os óculos do velhinho que volta a enxergar, lentes para curar essa absurda desculpa esfarrapada que é o daltonismo racial.

E nós seguimos plenos de responsabilidade, no meio do assassinato de Beto Freitas, essa catástrofe-síntese de nossas duas últimas obras: racismo e supermercadismo. Enquanto puder, faremos lentes. Não há mais espaço para desculpas, só é daltônico quem quer.

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