Por Breno Castro Alves
Newsletter da Elefante

 

A história se passa entre Olivença e as serras no sul da Bahia, um desses lugares mais lindos do mundo que deram de estar no Brasil. O clima é tropical e agradável, as terras vão da beira do mar ao topo dos morros cobertos pelas brumas da Mata Atlântica, e são palco de contínua disputa fundiária entre indígenas e não indígenas, com histórico prejuízo dos habitantes originários.

Não muito diferente do restante do Brasil, grosso modo. Suas especificidades se devem à invasão do território indígena com o monocultivo de cacau e o turismo, e à resistência tenaz dos Tupinambá, povo que habitava essas terras antes dos primeiros portugueses com escorbuto desembarcarem no continente.

Desde 1500 tem mais invasão que descobrimento, diz o samba-enredo da Mangueira. Inclusive, fica bem ali, no vizinho município de Porto Seguro, o local onde teriam Cabral e seus marinheiros primeiro pisado na então virgem Terra de Vera Cruz.

As invasões nunca cessaram. Foi na primeira metade do século passado que um tal doutor Almeida fez-se coronel e, denunciam os Tupinambá, loteou as terras, matou e expulsou quem pôde para depois transformar as matas em fazendas de cacau.

Apenas em 2001 os Tupinambá de Olivença foram reconhecidos oficialmente como indígenas pela Fundação Nacional do Índio (Funai). A primeira fase de demarcação do seu território se concluiu em abril de 2009, mas o processo ainda não chegou ao fim e, na prática, as invasões continuam.

Os donos da terra é uma maravilha saindo do forno, livro em quadrinhos que conta a história desta luta pela perspectiva dos Tupinambá. São sete relatos poderosos que dão contorno a uma visão de mundo baseada em potente cultura oral.

O livro é assinado por Daniela Alarcon, Vitor Flynn e Glicéria Jesus da Silva. A semente foi plantada durante o largo envolvimento da antropóloga Daniela, que há anos acompanha essa luta e esse lugar, em particular a aldeia Serra do Padeiro, onde Glicéria é uma das principais lideranças, irmã do grande cacique Babau.

Flynn é o artista paulistano que desdobrou suas belíssimas aquarelas (vocês conhecem a HQ Xondaro, de sua autoria, que publicamos em 2016?) sobre o cenário tupinambá. Visitou a aldeia e seguiu trabalhando em cima de fotos e outras referências visuais. Todo o processo levou quatro anos e está dando frutos agora.

Os relatos e cenários foram reconstruídos a partir da contribuição fundamental de Glicéria, que se debruçou na pesquisa e ampliou as histórias. Os três compartilharam todas as etapas criativas; roteiros, desenhos e correções rodaram entre os três, sem falar das muitas outras cabeças que colaboraram com perspectivas e opiniões sobre a obra.

Daniela já publicou conosco O retorno da terra, em 2019, fruto de sua dissertação de mestrado, um texto reflexivo, com suas muitas referências e análises sobre as retomadas de terras na Serra do Padeiro. À época, a parceria entre Daniela e Glicéria, que assinou o prefácio do livro, já estava consolidada, como demonstra essa entrevista que as duas deram ao podcast Guilhotina, no lançamento de O retorno da terra.

 

Arte no lattes

Neste Os donos da terra temos o mesmo objeto, a mesma luta, agora representada por um viés lírico, que faz a opção de narrar em primeira pessoas algumas vidas e suas histórias marcantes.

O livro parte desse limite tênue entre antropologia e arte, buscando tensionar os limites da academia. Daniela relata desconforto com o encastelamento acadêmico, que claramente tem mais potencial de contribuição social do que seus volumes e mais volumes de crítica e análise, que frequentemente não se abrem à sociedade mais amplamente.

Os donos da terra consegue impactar as duas esferas. Ao mesmo tempo que demonstra como a pesquisa rigorosa pode ser mais acessível ao grande público, também e principalmente presta como artefato cultural tupinambá.

Porque precisamos dizer: a enorme beleza aqui é apresentar forma ao mundo. Os três autores são artistas que utilizaram a capacidade de imersão dos quadrinhos para materializar essas perspectivas em um objeto de papel maravilhoso.

Então tome uma rodada de reafirmação do mundo e dos modos de vida ali representados — que é a arte em seu papel mais nobre, expandindo fronteiras e afirmando um mundo que tentam destruir.

 

Em defesa do mundo

Mais ainda porque falamos de um povo atacado também em sua identidade. A pressão exercida pelas elites financeiras e culturais também é uma pressão narrativa, que pinta indígenas do país todo como aproveitadores e invasores das terras, a versão comodamente genocida que boa parte da nação compra alegremente.

São raríssimas as obras do Brasil canônico, seja nas artes ou na literatura, que possuem a sensibilidade necessária para acompanhar a perspectiva dos povos originários.

Os donos da terra faz exatamente isso, busca o afeto pela beleza da luta e se constrói como mais uma chance para difundir as narrativas tupinambá. A imagem da capa representa o corpo frágil de dona Maria Cabocla, que enfrenta uma escavadeira. Foi inspirada por um dos frames do vídeo Areal, onde está registrada a resistência dos indígenas contra a extração predatória de areia em suas terras.

Os Tupinambá entram com o corpo na frente das máquinas porque são guerreiros, sempre foram. A luta se atualiza e diversifica, hoje está expressa também nas redes sociais, como esta página de Instagram do Colégio Estadual Indígena Tupinambá Serra do Padeiro, que organiza postagens atualizadas sobre a luta constante do povo.

Mas nada disso apaga a perspectiva das coisas miúdas. Dona Maria Cabocla é representada como a personagem que vende doce na praia para criar seus filhos e envelhece cercada pela família, todo um ambiente doméstico que é pouco levado em conta quando se fala em luta, mas que, conforme os autores entendem, é central para articular a resistência.

 

Experiência múltipla

Os donos da terra traz sete histórias, diferentes entradas para construir um painel sobre a mesma luta. Cada uma tem seu tempo e poética, sempre valorizando a força da fala. Boa parte do livro é transcrição literal do que foi dito pelos Tupinambá e gravado por Daniela. A oralidade imagética e a retórica forte, colorida desse povo fica registrada sobre as aquarelas delicadas e detalhistas de Flynn.

A prosa é tão rica que no meio do caminho se fez necessário consolidar o glossário, que ocupa nove páginas da obra. O resultado é um livro forte e delicado que empresta contornos para diferentes formas como a vida se espraia nestas terras do sul da Bahia.

Trate com cuidado: esse objeto carrega mundos.

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