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Por Mariana Bastos
Publicado em Medium

 

Em 2019, passei o 20 de julho em Buenos Aires. Talvez essa data não te provoque uma associação imediata. São poucos no Brasil que atribuem algum valor ao Dia do Amigo. Na Argentina, no entanto, a data tem um peso simbólico similar ao do Dia dos Namorados (Día de San Valentín por lá). Fiquei surpresa quando vi meus amigues argentines plenamente mobilizades para festejar, comprando presentes com antecedência, reservando mesas em bares e restaurantes, mandando recados fofos para os vários componentes de suas respectivas redes de afetos não românticos.

É verdade que o 20 de julho argentino também se tornou uma data comercial, mas há algo de bonito numa cultura que celebra coletivamente a amizade, esse tipo de relação tão importante, mas que em geral é subestimada e rebaixada na hierarquia dos afetos. Penso muito sobre isso desde que comecei a questionar a monogamia como sistema há sete anos.

Um dos processos mais bonitos de desconstruir a monogamia passa por valorizar as amizades e garantir-lhes uma centralidade nas nossas vidas. Há quem jure que não monogamia se trata de reivindicar um maior número de parceiros sexuais. Eu diria que não há visão mais rasa do que esta.

Repensar o mundo através de uma ótica não monogâmica é, sobretudo, questionar a hierarquia imposta pelo sistema monogâmico (como bem aponta Brigitte Vasallo), na qual o Casal™ ocupa o topo, enquanto os outros tipos de relações (com pai e mãe, amigues, colegas de trabalho, etc) são relegadas a um segundo, terceiro plano. Em suma, não importa há quanto tempo você tenha uma relação harmoniosa com um amigue, se dividem a mesma casa, fazem coisas juntes, viajam, cozinham… Se o o-amor-da-sua-vida™ aparecer, o caminho esperado socialmente é o de que você saia da casa que divide com seu amigue para se unir ao seu amor e viver o idílico sonho prometido por praticamente toda a cultura ocidental do felizes-para-sempre™.

Já parou para pensar que são poucas as narrativas ficcionais que colocam no centro relações não românticas? Thelma & Louise foi um raro caso nos anos 90, sobretudo numa época em que a narrativa hegemônica era a de que as mulheres não poderiam ser amigas de verdade porque em geral estavam rivalizando pela atenção de um homem, aquele com quem poderiam formar o almejado Casal de Cinema™. É curioso pensar que o “final feliz” roteirizado para a dupla de amigas no filme foi o suicídio.

Também é curioso pensar que “Friends”, a série que deu protagonismo à amizade, tenha se encerrado com a separação dos personagens principais em casais. A mensagem deixada é clara e em perfeita consonância com o sistema monogâmico: compartilhar a vida com amigues é apenas uma fase da juventude na transição para a vida adulta, esta etapa que se consagrará quando você encontrar seu par romântico para se casar e formar um núcleo reprodutivo.

O sistema monogâmico não é fortalecido apenas por uma muito bem sucedida doutrinação promovida pela grande maioria das narrativas ficcionais, que vai das comédias românticas de Hollywood até a música sertaneja, por exemplo. O Estado te oferece uma série de benefícios e direitos se você fizer parte de um Casal™, especialmente se for heterossexual. Experimente, por exemplo, fazer um financiamento de um apartamento com um amigo. Ou passar sua cidadania para uma amiga com quem você mantém uma relação estável há 20 anos. Nenhuma dessas tarefas será facilitada pelo Estado, tal qual seria no caso de uma união monogâmica. Não à toa, há casos de amigues que, para driblar o sistema, se casam só para obter direitos similares aos concedidos ao Casal™, como o visto de residência em outro país.

O sistema monogâmico é tão bem azeitado que, diante de tantos privilégios oferecidos ao Casal™, nosso imaginário é amputado. Não conseguimos sequer conceber estabelecer relações longevas de parceria de vida (constituir família, como preferem denominar alguns) com amigues porque os vínculos de amizade, em geral, não são reconhecidos por políticas públicas.

Quantas pessoas conhecemos que escolheram passar a vida, criar filhos, fazer investimentos ou contrair dívidas de longo prazo para a compra de um imóvel em parceria com amigues? Os casos que conhecemos de vínculos de convívio não românticos são justamente aqueles formados por pessoas que, alijadas do sistema monogâmico, não encontraram outra alternativa a não ser contar com o apoio de amigues. Exemplos deste tipo são mais comuns entre LGBTQs.

Novas parentalidades são construídas quando membros dessa comunidade acabam expulsos de suas famílias consanguíneas e não lhes resta outra opção além de apostar no acolhimento de amigues para sobreviver. Outras excluídas pelo sistema monogâmico são as mulheres grávidas deixadas por seus parceiros. Fala-se em maternidade solo, mas muitas delas têm de recorrer aos vínculos não românticos para criar e sustentar o bebê, sobretudo em regiões periféricas.

Levando todo esse panorama em consideração, cabe fazer questionamentos sobre a monogamia como “escolha”. Se a única opção viável de aliança afetiva plenamente reconhecida pelo Estado é o da formação de um núcleo reduzido com seu par romântico, é possível falar em escolha? As pessoas escolhem mesmo formar a tradicional família nuclear, quase sempre heterossexual, ou não lhes é oferecida e facilitada outra opção?

Daí a importância de se questionar a monogamia como um sistema imposto e compulsório, e não como uma mera prática. Uma vez que começamos a entender a monogamia como um sistema que hierarquiza nossos afetos, as amizades (ou outros tipos de relações não sexuais) passam a assumir um papel de resistência quando lhes concedemos um status similar ao dos relacionamentos românticos. Em suma, fazer sexo ou não com uma pessoa deixa de ser um critério definidor do nível de intensidade da relação que você terá com ela.

Fazer uma reflexão profunda sobre não monogamia é sobretudo permitir-se imaginar alternativas, buscar construir redes de afeto românticos e não românticos baseadas na horizontalidade. Não há como quebrar o sistema monogâmico sem mexer em sua estrutura hierárquica e extremamente verticalizada. Tiremos o Casal™ ou até mesmo o Trisal™ do pedestal.

 

Mariana Bastos é jornalista e prepara a tradução do livro Pensamiento monógamo, terror poliamoroso, da ativista espanhola Brigitte Vasallo, que será publicado no Brasil pela Elefante.

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