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Muito além do micro-ondas

Quem trabalha fora talvez nunca tivesse passado tantos dias seguidos comendo em casa em toda a vida adulta. Longe dos restaurantes por quilo, dos PFs e dos refeitórios do serviço, é tempo de redescobrir combinações e temperos: um gesto extremamente carregado de sentido político, social e econômico

“Se durante a quarentena você escolheu comer comida de verdade, feita em casa a partir de ingredientes que vêm da natureza, gostaria de lembrar que com essa escolha e dedicação você está melhorando sua alimentação de maneira permanente! É um ganho que você nunca vai perder.”

A mensagem foi publicada por Rita Lobo, que há anos se dedica a receitas e dicas de cozinha em livros, na televisão e também em seu site. Nessas semanas de quarentena, ela tem feito lives diárias para ajudar quem busca pitacos para preparar o almoço. Outros nomes conhecidos como Bela Gil e Paola Carosella também militam midiaticamente por uma alimentação saudável e criativa. Não é difícil encontrar na rede conteúdos que te ajudem a derrubar a ideia do “não sei cozinhar”.

Quem trabalha fora talvez nunca tivesse passado tantos dias seguidos comendo em casa em toda a vida adulta. Longe dos restaurantes por quilo, dos PFs e dos refeitórios do serviço, é tempo de redescobrir combinações e temperos, além de organizar a rotina para conseguir tomar um tempo na cozinha e ver como pode ser libertador preparar o próprio prato.

“Muita gente que não sabia fritar um ovo sacou que ganhar autonomia é muito positivo. Quem está aprendendo a cozinhar agora vai ganhar uma ferramenta para deixar a vida melhor, para sempre. Homens e mulheres”, disse Rita Lobo em entrevista à TPM. A cozinheira da tevê escreveu, junto com Bela Gil, pequenos textos para o livro Uma verdade indigesta, de Marion Nestle, que publicamos em 2019 — e sobre o qual falaremos mais adiante.

Diante dessa cruzada por uma melhor relação entre nós e o prato, é impossível não falar dos delivery. Explodiram os números de pedidos e também de novos entregadores pelos serviços de aplicativos. Em março, no início das medidas tomadas por conta da pandemia, dezoito mil novos restaurantes e 51 mil novos entregadores entraram na base do iFood (num total, respectivamente, de 158 mil estabelecimentos e 175 mil trabalhadores), números que seguiram parecidos em abril.

E, à parte um debate sobre a precarização do emprego e as condições de segurança desses ciclistas e motoboys pelas cidades — assunto que já foi tema de outras newsletters da Elefante —, o tema bateu definitivamente na comida. No início da semana passada, críticos resgataram uma campanha antiga do iFood em que a empresa manifestava seu desejo de “fechar as cozinhas tudo”. Tal como as propagandas dos alimentos ultraprocessados, a estratégia é tornar as pessoas unicamente compradoras de suas refeições. A peça pegou mal, ainda mais agora que a quarentena escancarou algumas “verdades indigestas”, e acabou cancelada.

Indigestão

Em Uma verdade indigesta: como a indústria alimentícia manipula a ciência do que comemos, a professora Marion Nestle disseca todo o mise en place de quem prepara os produtos que encontramos nas prateleiras. As estratégias de marketing, os estudos pagos e seus resultados manipulados ao gosto empresarial, os truques de quem imita comida e vende mentira num pacote — enfim, como é que alguém inventa algo de comer, embala, prepara um design cativante e ainda convence as pessoas de que aquilo te nutre de forma fácil e prática?

Por exemplo, a Coca Cola. Como conta Marion, em 2012 a marca de bebidas anunciou um grande esforço para combater evidências que ligam os refrigerantes a dietas pobres e problemas de saúde. Assim, foi possível identificar centenas de artigos diretamente financiados pela empresa — por meio de uma fundação com nome bonito, claro — ou realizados por pesquisadores com laços financeiros com a companhia. Eles concluíam, em geral, que os açúcares são inofensivos no debate sobre controle de peso.

Outra evidência da incansável Marion, essa pesquisadora de mais de oitenta anos que atendeu a todos com muita simpatia quando veio ao Brasil: em 2018, repercutiu muito uma notícia que dizia que comer chocolate e amêndoas reduz o risco de doenças cardiovasculares. De onde vinha a informação? Bom, estava baseada numa pesquisa publicada com patrocínio da Hershey’s, fabricante de chocolate, e do sindicato dos produtores de amêndoas da Califórnia.

“Marion Nestle foi a primeira pessoa que me ajudou a abrir os olhos para os interesses da indústria alimentícia”, diz Bela Gil, em um texto para o livro. Marion mantém um site chamado Food Polítics, em que relata tudo o que acontece no mercado dos alimentos: uma referência importante para quem quer saber, por exemplo, do impacto do coronavírus no setor das carnes ou conhecer dicas de segurança para momentos sensíveis a contaminação.

Cebola na manteiga

Seja pela disponibilidade de tempo dentro de casa, seja por uma reflexão em aproveitar o momento atípico para redefinir certas rotinas e hábitos de consumo (ou a soma disso), a quarentena tem revelado novos padeiros e padeiras a cada dia. O “como fazer pão” se tornou uma das principais buscas dos brasileiros na internet, e seguindo a tendência os veículos têm preparado material sobre isso (aquiaqui ou aqui). Saiu até um podcast de pão. Tanto que podemos dizer, com o perdão do trocadalho, que vivemos uma “pãodemia”.

É claro que muita gente já se liga nesse assunto bem antes de seguir a recomendação de ficar em casa o máximo possível, mas a mudança da rotina tem motivado cuidados — inclusive com a alimentação.

Atenção às crianças (grande e pequenas), que, se passarem o dia beliscando itens industrializados, como salgadinhos e bolachas, depois podem ter dificuldade para retomar o ritmo da alimentação regular quando voltarem os horários da escola. Também à organização das compras, já que muita gente, com os dias voltados para a vida na rua e no trabalho, acaba não tendo a prática de ir ao mercado e com um planejamento para os próximos pratos.

Indo mais a fundo, o pessoal do site O Joio e o Trigo — nossos parceiros em vários projetos, incluindo a publicação de Uma verdade indigesta — vem há muito tempo tratando jornalisticamente dessas questões fundamentais, olhando nossos almoços e jantas sob a ótica da saúde e também dos abusos da indústria. E, agora, durante a quarentena, também fazendo coro à ideia de que cozinhar não é um fardo — nunca foi —, mas um cuidado.

“Para que muitos entendam que cortar cebola não demanda habilidades mágicas, que dá para colocar o feijão na pressão enquanto se faz alguma outra coisa da vida, que preparar mandioca é uma banalidade mais que fundamental, recuperar nossa autonomia nas coisas mais simples tornou-se uma necessidade. Uma virtude. A perspectiva de um isolamento prolongado nos coloca diante da possibilidade de aprender e reaprender”, escreveu João Peres, editor do site e membro do conselho editorial desta Editora Elefante.

Se muitos filósofos têm falado sobre as mudanças que um suposto novo mundo irá nos impor quando tudo isso passar, talvez a relação com a cozinha seja o impacto mais claro e presente nas rotinas de milhões de pessoas por essas semanas esquisitas.Enxergar o que se come e propor uma nova relação com o prato — mais autônoma que passiva, mais autêntica e menos motivada por promoções de aplicativo — pode ser, usando o termo do momento, um novo normal.

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