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Mineração, genealogia do desastre

Neste ensaio histórico-sociológico, Horacio Machado Aráoz parte da reflexão sobre a história extrativista de Potosí, na Bolívia, metáfora da América colonial, para oferecer uma análise profundamente afiada e original sobre nosso passado e presente

Em Mineração, genealogia do desastre: o extrativismo na América como origem da modernidade, Horacio Machado Aráoz perverte a visão tradicional sobre a colonização europeia do continente americano e as origens do sistema capitalista, considerando a extração mineral realizada no século XVI em Potosí, na atual Bolívia, como a origem da modernidade — e dos eventos políticos, sociais e econômicos que nos trouxeram até aqui.

“A primeira urbanização moderna não se deu em Londres ou Manchester, mas em Potosí. O espírito do capitalismo não foi calvinista, mas católico. O protótipo desse espírito não foi Benjamin Franklin, mas Colombo, Cortés, Pizarro e outros aventureiros especialistas na arte da guerra. Com eles, e através deles, a modernidade se origina a partir de uma nova forma histórica de mineração, surgida do misterioso influxo que os metais preciosos começam a exercer sobre os corpos e as almas.”

Parece mentira, mas seguimos enjaulados na Colônia. Nossas cidades são regidas pela lógica instaurada há séculos por conquistadores e, depois, imperialistas. Nossos governos. A maneira como se estruturam nossas sociedades. Também nossos corpos e, principalmente, nossa racionalidade são coloniais.

Neste ensaio histórico-sociológico, Horacio Machado Aráoz, professor da Universidade Nacional de Catamarca, na Argentina, parte da reflexão sobre a história extrativista de Potosí, na Bolívia, metáfora da América colonial, para oferecer uma análise profundamente afiada e original sobre nosso passado e presente.

Nela, a mineração é o ponto de partida para o Capitaloceno, a era geológica em que os seres humanos se converteram num fator de destruição capaz de colocar em risco a própria existência. E a violência é o eixo fundante sobre o qual se estruturam, até hoje, as sociedades latino-americanas.

O Estado contemporâneo, argumenta o autor, nasce de uma aliança mineral: a prata, fundamental para o ciclo de acumulação primitiva que garantiu à Europa o pioneirismo da industrialização, encontra-se com o chumbo, imprescindível para fazer girar a máquina de guerra que subjuga povos e indivíduos. Plata y plomo.


Extrativismo e dominação, pais da modernidade. A partir do século XVI, com a descoberta do Cerro Rico, Potosí passou por um processo de urbanização inédito. Abrigava centenas de milhares de habitantes. Nessa cidade andina se instalou uma lógica de organização do espaço e do funcionamento econômico da qual somos herdeiros. Ali foram engendrados nosso lugar no mundo e nosso imaginário. As consequências são conhecidas.

Mineração, genealogia do desastre: o extrativismo na América como origem da modernidade é leitura fundamental para quem deseja entender melhor como nasceu e cresceu nosso continente. À diferença das análises convencionais, Horacio Machado Aráoz situa no extermínio das populações originárias e no terror sistemático a fundação do mundo como o vivemos — um lugar onde a crueldade e a cobiça pautam a existência social.

“A formação do espírito do capitalismo, o devir-mundo do capital, a constituição do mercado mundial, da ciência  e do Estado modernos, a posterior derrota do desenvolvimento tecnológico, o mundo do conforto e a ‘vida de consumo’ contemporâneos, enfim, ‘o Welfare State e o Warfare State’, são todos fenômenos inexoravelmente dependentes da irrupção e da extensão prática da mineração nascida dos olhos e do coração de Cristóvão Colombo.”

Termos técnicos, métodos de extração e áreas geográficas são o pano de fundo para o que realmente importa ao autor: entender como, a partir das matanças e das minas do Altiplano, a violência se espalha como amálgama de nossas sociedades — e se torna um processo infinitamente mimetizado. Aqui, a dialética entre opressor e oprimido ganha o terror colonial como princípio fundante, e a febre da mineração como sintoma.

“Potosí é o consumo, a ostentação, o luxo, a acumulação, o investimento, o cálculo, o custo-benefício. E é o inverso: a pobreza extrema. Uma pobreza inédita. É fome como castigo, privação que se faz corpo e produz marcas na alma; que educa e impõe a racionalidade até mesmo ao mais selvagem e rebelde. Fome dialeticamente acompanhada pela presença ostensiva do luxo e da riqueza, expressão do êxito e da aprovação social.”

Olhando para o presente, Horacio Machado Aráoz analisa como governos de diferentes matizes seguem enamorados da lógica da mineração — e do extrativismo em geral. Quando o preço das commodities está em alta, surgem governantes que acreditam que reinarão para sempre, e que desqualificam qualquer oposição aos projetos extrativistas como um obstáculo ao “progresso”.

Quando as cotações estão em baixa, dobram-se apostas para arrancar da terra tudo o que possa ser transformado em divisas. E, assim, os opositores são vistos como promotores da fome e da miséria — geradas, pelo contrário, pela atividade mineira.

Mas, como sugere o autor, nem tudo está perdido. As alternativas estão à vista. São ideias e fazeres que souberam sobreviver a séculos de privações. Encontrá-las, porém, passa por se livrar da cegueira dos sentidos imposta pela razão colonial.

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