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Flip, Bishop, o Brasil que temos e o que queremos

Por Tadeu Breda

Estou envergonhado. A Polícia Militar provocou a morte de nove jovens durante mais uma repressão a bailes funk, desta vez em Paraisópolis, na periferia de São Paulo, em 1o de dezembro de 2019. Vinte dias antes, em 10 de novembro, outra operação do tipo, em Guaianases, distrito da zona leste paulistana, resultou na explosão do olho esquerdo de uma adolescente de dezesseis anos, atingida por uma bala de borracha.

Mortos e feridos pelas mãos — ou graças à omissão — do Estado se multiplicam nas florestas, nos campos e nas periferias do país. As terras indígenas estão sob ameaça de se transformarem em pequenas “serras peladas”. Manchas de óleo contaminam o litoral do Nordeste. A Amazônia bate recordes de desmatamento. Barragens de mineração estouram em Minas Gerais, destruindo rios, modos de existência e centenas de vidas. Fundamentalistas religiosos avançam aceleradamente sobre a política, impondo suas crenças à população. As instituições os projetos educacionais e culturais padecem sob a batuta de novos “gestores”.

Faz mais de seiscentos dias que Marielle Franco foi executada em pleno centro do Rio, e ainda não sabemos ao certo quem puxou o gatilho nem quem são os mandantes. A violência e a injustiça são generalizadas, insultantes, revoltantes — e eu aqui escrevendo sobre a indicação da escritora estadunidense Elizabeth Bishop como autora homenageada da Festa Literária Internacional de Paraty (Flip) em 2020.

Sinto uma vergonha tremenda, monstruosa, quase paralisante. Mas, ainda assim, quero escrever, porque os responsáveis por isso não demonstraram qualquer sinal de vergonha ou arrependimento pela indicação. Menos ainda parecem entender ou se incomodar com a íntima relação existente entre a louvação de uma artista apoiadora do golpe militar com as mais recentes cenas da tragédia nacional, tão marcada pela truculência.

Em uma carta ao amigo Robert Lowell, Bishop, no calor dos acontecimentos, descreveu o golpe de 1964 como “uma revolução rápida e bonita”. Aceite-se o “rápida” como uma verdade factual: o episódio final da deposição de João Goulart pela caserna rebelada realmente ocorreu com grande agilidade. Já o “bonita”, aplicado a 1964, remete a certo gosto estético muito em voga, hoje, nas mais altas rodas do poder em Brasília.

Tal posicionamento político não deve desmerecer a produção de Elizabeth Bishop, uma importante poeta do século XX, detentora do Pulitzer de poesia de 1956, nem das relevantes traduções de escritores brasileiros que ela verteu ao inglês, como Clarice Lispector e João Cabral de Melo Neto, nem das antologias que organizou, contribuindo com a difusão da literatura nacional para além de nossas fronteiras.

Contudo, na cultura como na política, timing é tudo. É inaceitável que o principal evento literário do país homenageie uma autora que apoiou o “rápido e bonito” golpe de 1964 quando temos um presidente da República que reivindica constantemente este mesmo golpe e o regime militar que o sucedeu, a censura, a tortura, a perseguição, a prisão e o desaparecimento de opositores, não apenas no Brasil, mas em todo o Cone Sul.

Quando até mesmo políticos conservadores, como Sebastián Piñera, responsável pelas mortes e olhos destruídos pela repressão violenta aos protestos no Chile em outubro e novembro de 2019, tiveram que marcar publicamente algumas diferenças com Bolsonaro devido a suas declarações simpáticas a notórios ditadores homicidas do quilate de Augusto Pinochet.

O fascismo que se espraia pelo Brasil merece, no mínimo, uma condenação firme. E exige ações contrárias contundentes. Mas a Flip mostra-se alheia à realidade que se desenrola, cruel, para além do centro histórico de Paraty — ou mesmo ao que acontece entre suas belas igrejinhas coloniais.

Em 2019, o fascismo adentrou as ruas de pedra deste patrimônio histórico, cultural e arquitetônico, quando um pequeno grupo de bolsonaristas enraivecidos tentou impedir com uma potente aparelhagem de som (tocando o hino nacional ao ritmo de funk, ali obviamente não reprimido pelas autoridades) um debate com o jornalista estadunidense Glenn Greenwald no barco da Festa Literária Pirata das Editoras Independentes (Flipei), que acontecia do outro lado do rio Perequê-Açu.

Rojões foram lançados diretamente contra os debatedores, felizmente sem atingir ninguém. Tudo porque Glenn, vencedor do Pulitzer de jornalismo de 2014, havia revelado o conluio de procuradores e juízes da Lava Jato — entre eles, o atual ministro da Justiça, Sergio Moro — para fraudar o devido processo legal e condenar Lula, retirando-o das eleições de 2018.

Na ocasião, o diretor e a curadora da Flip — os mesmos que agora escolheram Bishop — lavaram as mãos, mesmo tendo a balbúrdia bolsonarista atrapalhado também a programação oficial. Questionados, na semana seguinte, durante um pequeno debate em São Paulo, justificaram a própria inação dizendo que, em anos anteriores, também indígenas e quilombolas haviam feito livremente manifestações durante o evento.

(Aqui nem é preciso mencionar o abissal desequilíbrio de legitimidade entre o grupelho verde-amarelo e os povos originários e as comunidades tradicionais do litoral sul fluminense; tampouco será necessário lembrar que, se índios e negros baixassem pelo centro de Paraty com escandalosos alto-falantes, disparando fogos de artifício contra seus adversários políticos, seriam prontamente impedidos pela polícia.)

É o mesmo falso pluralismo com que argumentam agora os defensores da indicação de Bishop, minimizando seu apoio ao golpe de 1964 e lembrando que Jorge Amado, homenageado em 2006, era stalinista, ou que Nelson Rodrigues, nome escolhido em 2007, era simpático ao regime dos generais.

São cortinas de fumaça, pois desconsideram o momento. Em 2006, não havia, como não há, nenhum espectro do comunismo rondando o Brasil, nem se estava instalando em algum rincão isolado desta terra qualquer espécie de gulag tropical; em 2007, nem os mais pessimistas desconfiavam de um retorno do militarismo ao poder, ainda menos por vias eleitorais.

A realidade atual é completamente diferente — e deprimente. E é isso o que mais importa, agora. Temos um presidente envolvido com as milícias cariocas, fã de um suposto guru auto-exiliado nos Estados Unidos, apologista das armas de fogo, fundador de um novo partido de extrema direita que ostenta orgulhosamente um brasão desenhado com balas de fuzil, adepto das fake news e das correntes mentirosas do WhatsApp, e subserviente ao baluarte do atraso Donald Trump.

No Rio de Janeiro, temos um governador que manda helicópteros da polícia disparar contra comunidades, que festeja o assassinato de criminosos (desde que sejam negros e favelados) e que diz publicamente que os policiais devem “atirar na cabecinha”. O Exército está nas ruas, matando trabalhadores com oitenta tiros ao “confundi-los” com bandidos. Crianças têm a vida abreviada por balas de fuzil compradas com dinheiro público.

A lista de barbaridades é tremenda, e o nexo simbólico e material entre o que estamos vivendo agora e o que vivemos em 1964, mais que explícito, é intencional: um projeto. Recorde-se o “poema-manifesto” declamado ao vivo, em cadeia nacional de televisão, pelo então deputado federal Jair Bolsonaro ao votar a favor do impeachment de Dilma Rousseff, há apenas três anos:

Perderam em meia-quatro, perderam agora em 2016.
Pela família e pela inocência das crianças em sala de aula, que o PT nunca teve [sic].
Contra o comunismo, pela nossa liberdade.
Contra o Foro de São Paulo.
Pela memória do coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra, o pavor de Dilma Rousseff.
Pelo Exército de Caxias.
Pelas nossas Forças Armadas.
Pelo Brasil acima de tudo e por Deus acima de todos.
O meu voto é sim.

Não se pode pretender separar a vida e a obra do autor ou relevar manifestações tão importantes em sua trajetória pessoal, ainda mais quando, como na Flip, se homenageia o autor em sua plenitude, e não uma ou mais de suas obras ou características literárias específicas. Todo artista está imerso em seu lugar e em seu tempo, e obrigatoriamente, pela ação ou pela omissão, dialoga com os acontecimentos de sua época.

Elizabeth Bishop estava devidamente instalada no seio da elite carioca, de onde assistia aos desdobramentos políticos nacionais, e, privada ou publicamente, externou suas escolhas naquele momento. Talvez não soubesse o que viria depois do golpe. Porém, simultaneamente aos fatos, havia muita gente alertando sobre todos os perigos daquela aventura.

Hoje também. Desde 2013, pelo menos, grilos-falantes antecipam em textos, áudios e vídeos o fascismo que já chegou e se aprofunda mais e mais. Impossível alegar ignorância, naquele então ou agora, ainda mais sendo assim tão culto e inteligente, como o são esses escritores, curadores e diretores de grandes eventos literários, formados nas melhores escolas.

Se o objetivo da Flip foi criar polêmica e promover discussões sobre arte e política (que é sempre válida e necessária) evidenciando uma personalidade tão complexa como Bishop — primeira estrangeira homenageada pelo evento, lésbica, um tanto quanto colonialista, amiga de Carlos Lacerda —, é triste pensar que o fizeram escolhendo justamente alguém que defendeu o golpe de 1964. Destacar um autor ou autora que tivesse se oposto à quartelada, ainda que com contradições, marcaria ao menos uma posição contra a barbárie que se arrasta e se alastra.

Mas talvez a direção e a curadoria da Flip queiram se manter “imparciais”, como se imparcialidade existisse e, mesmo que existisse, como se fosse possível manter a neutralidade diante do que estamos vivendo todos os dias no Brasil. Somos muitos os que aguardamos um pronunciamento claro sobre seus objetivos e pretensões.

Olhe por onde se olhe, entretanto, a escolha de Elizabeth Bishop como grande nome da Flip em 2020 é injustificável. Ou só pode ser justificada pelo “lugar no mundo” ocupado pela elite cultural que habita os ambientes mais requintados ou descolados da zona oeste paulistana, da zona sul carioca ou de ambos, com passagens frequentes pelos mais hypados centros culturais estadunidenses e europeus.

É gente muito fina e elegante, que, por mais que possa assumir eventualmente posições progressistas e defender a descriminalização da maconha e do aborto e os direitos LGBTQ, no fundo, naqueles momentos de intimidade mais inconfessáveis, talvez dê graças a Deus que um movimento militar apoiado pelos Estados Unidos tenha impedido a realização das reformas de base propostas por Jango nos anos 1960.

Afinal, quando não tiveram que lidar com a perda traumática de familiares durante o regime, a ação dos generais acabou permitindo a seus pais e avós manterem as propriedades e as riquezas das quais eles, como herdeiros, agora desfrutam e se beneficiam: um status que lhes permite estar exatamente onde estão, dentro de uma minúscula patota de renda concentrada que se retroalimenta continuamente, hegemonizando a cultura brasileira sem sequer ter de fazer o mínimo esforço de olhar para a desgraça que se amontoa ao redor.

Tadeu Breda é coautor de Memória ocular: cenas de um Estado que cega (Elefante, 2018), autor de O Equador é verde: Rafael Correa e os paradigmas do desenvolvimento (Elefante, 2011) e editor da Editora Elefante.

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