"Capitalismo acima da democracia
esfola o trabalhador"

Conheça texto que embasou Projeto de Lei do Senado 421, apresentado em outubro pelo senador Lindbergh Farias, e que pretende limitar a 10% a comissão cobrada pelos aplicativos de transporte de seus "motoristas-parceiros"

Por Marcelo Zero
Em Vi O Mundo

 

O debate relativo ao aplicativo Uber, atualmente restrito a um embate entre taxistas e os motoristas precarizados dessa empresa de serviços, coloca algumas questões mais amplas e relevantes sobre o atual estágio e os novos mecanismos da acumulação capitalista no mundo e sua incompatibilidade última com a democracia substantiva.

Com efeito, o tema do Uber e dos problemas legais por ele ocasionados em todo o mundo inserem-se na questão maior da mal chamada “economia do compartilhamento” ou da “sociedade em redes”. Os defensores desse tipo de economia argumentam que ela aumenta a eficiência da utilização dos recursos e da mão de obra, diminui custos e preços e permite que indivíduos, consumidores ou provedores de serviços, cooperem livremente em benefícios de todos.

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De fato, a internet tornou tecnicamente possível a constituição de uma sociedade em rede e de uma economia de compartilhamento cooperativo. No início, essa possibilidade de ampla cooperação em rede acarretada pela universalização da internet permitiu o surgimento de empreendimentos que têm como características a cooperação “horizontal” em prol do bem público.

Um exemplo é a Wikipedia, uma enciclopédia pública, de acesso gratuito, que é construída e disponibilizada de modo inteiramente cooperativo. Outro exemplo tange à disponibilização dos softwares livres, como o Linux suas variantes, uma alternativa gratuita e cooperativa ao oligopólio exercido por gigantes como Microsoft e Apple.

Tal potencial gerou a certa visão romântica e panglossiana desse tipo de “nova economia”.

Alguns autores, como Jeremy Rifkin, vincularam essa potencial abundância cooperativa trazida pela revolução digital ao próprio “fim do capitalismo”. A economia do compartilhamento, segundo ele, exprimiria a capacidade humana de cooperação, não apenas entre pessoas que se conhecem, num círculo limitado por laços de parentesco e amizade, mas de forma anônima, impessoal e massificada, num quadro de igualitarismo. A internet poderia ser, assim, um instrumento de superação dos princípios econômicos do capitalismo e de superação da dicotomia capital-trabalho.

Entretanto, essa visão romântica da internet como instrumento democrático e supostamente socializante e da economia de compartilhamento por ela proporcionada não ficou restrita à atividade econômica. Ela também se expandiu ao campo social e político. Com efeito, na década de 1990 o boom da internet nos países mais desenvolvidos, notadamente nos EUA, suscitou a esperança de que a rede mundial de computadores, um espaço em tese neutro e democrático, propiciaria a todos os cidadãos oportunidades únicas e homogêneas para informa-se, formar-se e cooperar ativamente. São dessa época, note-se, os principais escritos de Manuel Castells sobre a sociedade em redes.

Chegou-se a argumentar que a internet e as “sociedades em redes” poderiam ser um sucedâneo à representação política tradicional e aos partidos, configurando uma nova democracia direta, mais radical, ágil e participativa, baseada em relações “horizontais e não hierarquizadas”.

Desse modo, a internet, a sociedade em redes e a economia do compartilhamento chegaram a ser consideradas, no plano utópico, como alternativas ao capitalismo (especialmente ao capitalismo oligopolizado), ao sistema tradicional de representação política e às formas antigas de sociabilidade.

Não obstante, com o passar do tempo foi ficando claro, para outros pensadores da rede e do mundo digital, que a internet está muito longe de ser um espaço efetivamente livre e democrático.

Obras como Who Controls The Internet? de Tim Wu e Jack Goldsmith, The Net Delusion, de Evgeny Morosov e, sobretudo, The Digital Disconnect: How Capitalism is Turning The Internet Against Democracy, de Robert McChesney, compõem uma visão mais realista e sombria da internet e de suas redes.

Essa última obra, em particular, demonstra como o mundo da internet é principalmente dominado pelos interesses de grandes companhias, que efetivamente moldam a rede mundial de computadores.

Com efeito, essas grandes companhias, com suas tecnologias proprietárias e seu imenso poder de produzir e controlar informações, transformam a internet numa grande plataforma de afirmação crescente de seus interesses próprios e particulares, em detrimento, muitas vezes, do interesse público.

Para quem tinha dúvidas desse domínio, a experiência malsucedida do Napster demonstrou cabalmente que quaisquer tentativas de se sobrepor aos interesses comerciais dominantes na rede serão devidamente contidas.

Mas não se trata somente de interesses comerciais e econômicos. Há também os interesses políticos.

As chocantes denúncias de Edward Snowden revelaram ao mundo que as grandes companhias que controlam o fluxo de informações da internet, como Google, Microsoft, Apple, Facebook, Yahoo etc. contribuem ativamente, através do sistema de espionagem PRISM, controlado pela NSA norte-americana, para transformar a internet numa gigantesca plataforma de controle político.

Nenhum cidadão do mundo que esteja conectado à rede está livre desse sistema ubíquo e bastante invasivo de espionagem, que devassa e-mails, ligações telefônicas, mensagens de texto, arquivos e postagens nas redes sociais.

Tudo isso, diga-se de passagem, é feito ao abrigo das leis norte-americanas e, como o grosso do fluxo de informações da internet passa por servidores que estão nos EUA, torna-se praticamente impossível contestar juridicamente essas atividades.

As denúncias de Snowden também revelaram a possibilidade, e talvez até a alta probabilidade, de que os fluxos internacionais de informações da rede mundial possam não apenas ser devassados, mas também eventualmente manipulados.

De fato, há viabilidade técnica para tais procedimentos. Em razão dessas denúncias, cresce no Brasil e no mundo as pressões para que a internet, um patrimônio utilizado por toda a humanidade, possa ser submetido a um controle multilateral e democrático, e não mais ao controle das grandes companhias de software e de um único governo.

No que tange especificamente à possibilidade “libertadora” da “economia de compartilhamento”, como alternativa à economia capitalista, ela foi inteiramente erodida com o surgimento das chamadas “empresas-plataforma”, ou empresas de tecnologia e software que acabam oligopolizando a prestação de alguns serviços.

O livro do economista britânico-canadense Tom Slee intitulado What´s Yours is Mine: Against the Sharing Economy, traduzido para o português como Uberização: a nova onda do trabalho precarizado, demonstra como a ideia utópica do compartilhamento cooperativo cedeu lugar ao seu exato oposto: a distopia de um hipercapitalismo desregulado.

Muito longe de exprimir a cooperação direta e igualitária entre indivíduos, o suposto compartilhamento, argumenta Slee, deu lugar à formação de gigantes corporativos cujo funcionamento é regido por “algoritmos opacos” que em nada se aproximam da utopia cooperativista estampada em suas versões originais.

Sob a retórica do compartilhamento escondem-se a acumulação de fortunas impressionantes, a erosão de muitas comunidades, a precarização do trabalho e o consumismo.

A Uber, por exemplo, tem hoje um valor de mercado de US$ 70 bilhões, superior ao da Ford ou da General Motors.

O suposto compartilhamento e a prometida reciprocidade acabaram se convertendo na oferta generalizada de trabalhos mal pagos e sem qualquer segurança previdenciária.

Ressalte-se que, no atual quadro de crise crônica e profunda e num ambiente em que os sindicatos estão cada vez mais fracos, com os direitos trabalhistas sendo aniquilados, inclusive no Brasil, os resultados, no mercado de trabalho, são devastadores.

Conforme afirma bem o sociólogo Ricardo Abramovay no prefácio à edição brasileira da obra de Tom Slee, este livro

é uma importante denúncia contra o cinismo dos que se apresentam ao grande público como promotores da cooperação social e do uso parcimonioso dos recursos, mas que na verdade estão entre os mais importantes vetores da concentração de renda, da desregulamentação generalizada e da perda de autonomia dos indivíduos e das comunidades no mundo atual.

São empresas que se apresentam publicamente como empresas de tecnologia, que apenas disponibilizam softwares cooperativos, mas que, a bem da verdade, são gigantes multinacionais de prestação de serviços, em diversos campos estratégicos.

E seus supostos “parceiros autônomos” são, isto sim, meros empregados sem salários fixos, sem garantias e sem direitos.

Uma escravidão tecnológica, mais perversa que a tradicional, pois se camufla em suposta autonomia e liberdade escolha.

Na realidade, essas grandes empresas capitalistas tornaram a “economia do compartilhamento” uma completa falácia e estão produzindo, no nosso entendimento, as seguintes consequências negativas nos Estados nacionais em que atuam:

a) Uma hiperconcentração do provimento de serviços, com a oligopolização transnacional de vários setores.

Ao contrário do que se diz, não há concorrência real entre essas empresas, pois a empresa pioneira e líder em geral destrói os outros empreendimentos, numa dinâmica conhecida como o “vencedor ganha tudo”.

b) Uma desregulamentação que impede ou dificulta o efetivo controle dessas empresas transacionais por parte do poder público, como o exemplo da Uber demonstra cabalmente.

c) Uma desnacionalização do setor de serviços, que passa a ser controlado pelos interesses dessas transacionais desreguladas.

d) Uma profunda precarização do mercado de trabalho, com redução de direitos e dos rendimentos, ocultada e mascarada pelo discurso falacioso da cooperação, do compartilhamento e dos “parceiros”.

e) A implosão dos compromissos e regras assumidos no Acordo sobre Comércio de Serviços da OMC, pois a desregulamentação implícita dessas empresas transnacionais abre totalmente o mercado de serviços dos Estados Nacionais, independentemente do disposto no texto desse ato internacional.

Assim sendo, a falaciosa “economia do compartilhamento”, materializada na Uber, AirBnb e várias outras transnacionais, longe de ser “alternativa ao capitalismo”, se constitui em forma perversa e dissimulada de hiperexploração da mão de obra em nível mundial, numa conjuntura em que a crise planetária impõe taxas de lucro descomunais e a fragilização dos trabalhadores.

Ao mesmo tempo, ela erode a capacidade do poder público de regulamentar serviços e desnacionaliza segmentos inteiros desse setor econômico estratégico, o que mais cresce na economia internacional.

O debate atual sobre a empresa Uber, muito contaminado pelos interesses imediatos dos taxistas e dos motoristas precarizados, deveria ser inserido nesse contexto maior de uma ampla discussão sobre a “uberização” da economia internacional e seus efeitos sobre a economia e a sociedade brasileiras.

Tal “uberização” não tem efeitos apenas sobre ao mercado de trabalho, mas também sobre a soberania nacional e o controle público dos serviços.

Portanto, ela demandaria a implantação de uma política destinada a enfrentar os seus amplos efeitos negativos, para além da mera regulamentação dos serviços do Uber.

Tanto McChesney quanto Tom Slee têm razão. A internet vem se convertendo celeremente num instrumento poderoso de domínio econômico e político de um hipercapitalismo ultraconcentrador e desregulado.

Trata-se de uma rede inteiramente dominada e conduzida por grandes empresas internacionais, as quais controlam a sua linguagem (os softwares e os aplicativos), as informações circulantes e suas transações econômicas.

Com efeito, a ubiquidade da rede mundial possibilita e estimula a constituição de enormes e virtuais megaempresas transnacionais que perpassam fronteiras, destroem direitos trabalhistas, evadem controles de Estados nacionais, sonegam impostos e reduzem cidadãos a consumidores e trabalhadores regulares a mão de obra precarizada e barata.

Ao mesmo tempo, as redes mundiais de informática facilitam a constituição de um capitalismo financeiro mundial, que evade qualquer controle democrático e dita políticas econômicas “obrigatórias”, independentemente das escolhas políticas feitas pelos cidadãos em eleições, o que torna inócuos os sistemas de representação.

De outro lado, ela também permite que EUA e aliados exerçam vigilância sobre praticamente todos que estejam conectados às redes e realizem intervenções políticas difusas em qualquer parte do planeta, manipulando informações e as redes sociais com o objetivo de desestabilizar regimes pouco amigáveis aos seus interesses.

Cada vez mais autores, como Picketty, por exemplo, vêm chamando a atenção para a incompatibilidade última entre esse hipercapitalismo financeirizado, desregulado e crescentemente desigual e excludente e a democracia real.

A acumulação capitalista desregulada, “uberizada”, financeirizada e ultraneoliberal de hoje prescinde dos ideais iluministas que a legitimaram em seu início.

O capitalismo atual prescinde também do ideário e das políticas da social-democracia tradicional, que criaram e afirmaram direitos sociais e econômicos e geraram o moderno Estado de Bem-Estar, como forma de dar sustentabilidade econômica, política e social a um sistema inerentemente instável e excludente.

A acumulação capitalista crescentemente desregulada prescinde até da política e viceja em regimes formalmente democráticos, mas que não permitem escolhas reais aos eleitores e cidadãos.

Tudo é dado pelas “escolhas técnicas” da “austeridade imprescindível” e das “leis” naturais do mercado controlado pelas finanças mundializadas.

Kapitalismus über alles (capitalismo acima de tudo) parece ser o lema de um mundo pós-democrático, no qual a verdadeira democracia não passa, como no mito de Platão, de sombra de um ideal distante e esquecido.

Nestes tristes trópicos, onde a realidade é mais crua e dura, a implantação do hipercapitalismo transnacional e da pós-democracia se faz com base em golpe, açoite e corrupção.

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A escravidão e a desigualdade, que historicamente conformaram o Brasil, agora retornam, tecnológica e politicamente renovadas, de braços dados com a modernidade pós-democrática e o ultraneoliberalismo econômico, às vezes legitimadas por simples portarias.

A única solução seria restaurar, com urgência, antes que o Brasil seja totalmente destruído, a soberania popular.

Mas, se a estratégia perversa das oligarquias funcionar, e Lula for excluído do próximo pleito, teremos, em 2018, a primeira eleição pós-democrática do Brasil.

Uma eleição no qual inexoravelmente se escolherá mais um Temer, mais uma figura descartável, que apenas dará continuidade ao avassalador avanço do “capitalismo acima de tudo”.

Teremos, de forma definitiva, um Brasil “uberizado”.

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