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Caça às bruxas ajuda a entender aumento de feminicídios, diz Silvia Federici

Autora de Calibã e a bruxa e O ponto zero da revolução fala sobre a ascensão do conservadorismo no mundo e do seu encontro com Marielle Franco

Por Paula Carvalho
Quatro cinco um

A filósofa e historiadora ítalo-americana Silvia Federici, autora do cultuado ensaio Calibã e a bruxa (Elefante), disse, em entrevista à Quatro cinco um, que estamos testemunhando um novo período de caça às bruxas ao longo dos últimos vinte anos. “Estou muito preocupada que a reação à luta das mulheres por mais autonomia, maior controle sobre nossas próprias vidas, em defesa das matas, das águas, dos campos, contra a mineração e a extração de recursos naturais seja de novo o retorno à caça às bruxas”. Disse que também ficou horroriza ao saber dos protestos contra a presença de Judith Butler em 2017, em que pessoas empunhavam cartazes com os dizeres: “Queimem a bruxa!”.

Dito isso, informou: “Eu não sou bruxa!”. Em seguida, explica a razão de uma negativa tão categórica. “‘É uma coisa boa dizer: ‘Nós somos as descendentes das bruxas’. Porque essas mulheres eram vistas como bruxas. Ao dizer essa frase, estamos reconhecendo que temos que lutar para mudar isso. Temos que lutar para garantir que não sejamos queimadas de novo. Tentaram matar essas mulheres e sufocar essa luta, mas continuamos aqui. Agora dizer que sou uma bruxa… eu não sou uma bruxa. Porque a definição é muito negativa, é a da mulher má. Podemos brincar com a palavra, mas temos que ter muito cuidado para compreender a realidade, pois ela foi muito brutal para muitas mulheres.”

Em Calibã e a bruxa, Federici defende como a caça às bruxas do fim da Idade Média e início da Idade Moderna foi um fenômeno essencial para o desenvolvimento do capitalismo. Esse mesmo fenômeno se repete no momento presente em vários lugares do mundo, como em alguns países africanos, na Índia, partes da Ásia e inclusive no Brasil, onde Fabiane Maria de Jesus foi espancada e morta no em 3 de maio de 2014, no Guarujá, no litoral de São Paulo, ao ser confundida com uma suposta sequestradora de crianças.

Na visão de Federici, os episódios atuais acompanham a expansão das relações capitalistas para todos os cantos do mundo, marcada pela expropriação de terras e de outros recursos naturais de populações locais. Nesse contexto, as mulheres, por serem o principal foco de resistência a essas mudanças, acabam sendo as principais vítimas da violência acarretada por essas novas relações. Portanto, estudar a caça às bruxas de séculos atrás ajuda a compreender o aumento da violência contra a mulher dos últimos anos.

Federici está no Brasil para participar de uma série de eventos para marcar o lançamento de O ponto zero da revolução: trabalho doméstico, reprodução e luta feminista, também pela Editora Elefante – em que discorre sobre sua participação no movimento Wages for Housework [Salários pelo trabalho doméstico], que defendeu a valorização e a remuneração do trabalho doméstico e reprodutivo feito pelas mulheres nos anos 1970.

Aos 77 anos, Federici disse que está se preparando para a morte e que ajudar as pessoas a morrerem é outra parte importante do trabalho reprodutivo das mulheres: “Temos de dar voz aos mortos”. Nessa entrevista, Federici falou, além da questão da perseguição às bruxas, das possíveis formas de resistir à ascensão do conservadorismo no mundo, de como foi seu encontro com Marielle Franco em 2016 e sua opinião sobre o romance O conto da aia, de Margaret Atwood.

Qual a importância de se entender a caça às bruxas no contexto atual?

Primeiro, estamos testemunhando um novo período de caça às bruxas ao longo dos últimos vinte anos, que acompanha o processo de globalização e das relações capitalistas; as políticas de extração de recursos naturais; os programas de ajuste estrutural; a intervenção de órgãos internacionais, como o Banco Mundial, na política econômica de muitos países que foram colonizados e hoje estão descolonizados.

Vemos isso acontecer na África, na Índia, em partes da Ásia e ouvi falar de alguns casos no México e até no Brasil. No Estados Unidos, estão sendo lançados filmes que mostram bruxas como mulheres com poderes maléficos. Estou muito preocupada que a reação à luta das mulheres por mais autonomia, maior controle sobre nossas próprias vidas, em defesa das matas, das águas, dos campos, contra a mineração e a extração de recursos naturais seja de novo o retorno à caça às bruxas.

As mulheres são um ponto de resistência importante?

Com certeza. Vejo as mulheres como cruciais para isso. E não estou sozinha. As mulheres estão na vanguarda pela luta em defesa da terra e da água, porque são elas que reproduzem a vida das comunidades. Essas atividades fazem aumentar a violência contra a mulher. Nas áreas de mineração, há violência contra as comunidades que estão sendo expropriadas de suas terras.

Isso também se traduz na dinâmica dos homens que trabalham duro, bebem, têm dinheiro e que acabam por se voltar contra as mulheres. A perseguição às bruxas foi apagada da história. Há historiadores que estudam o tema, mas não é algo ensinado nas escolas. Pelo contrário, a bruxa é apresentada como uma personagem imaginária, que foi ridicularizada, como a de uma bruxa voando com um chapéu grande. É obsceno!

Se mais mulheres entendessem o que aconteceu, uma grande mudança realmente viria, porque estamos falando de milhares de mulheres que foram terrivelmente torturadas, acusadas de crimes horríveis. Elas foram queimadas vivas na praça da vila. Hoje, na Europa, é possível ir até os lugares onde as mulheres acusadas de serem bruxas – porque elas não eram bruxas de verdade – foram queimadas. Existe um turismo em torno disso. Há bonecas de bruxas!

Precisamos voltar para o passado e nos perguntar por que houve essa perseguição, como foi útil para formar o capitalismo, qual foi o impacto e as consequências dessa perseguição na posição das mulheres, como mudou a forma como as mulheres eram vistas na sociedade, o que aprendemos com essas perseguições sobre a atualidade. Como voltar para o passado nos ajuda a entender que o aumento da violência contra a mulher hoje está acontecendo no momento em que o capitalismo está ampliando seu poder para todos os cantos do mundo?

E também precisamos entender a caça às bruxas por um princípio de solidariedade para com essas mulheres, não deixando que os crimes do passado sejam ignorados. Há algo muito errado em não trazer para o presente o que aconteceu com essas mulheres. Quem ataca as mulheres hoje financia esquadrões da morte ou deixa impunes aqueles que estão matando mulheres. Essas pessoas são descendentes dos magistrados que condenaram as mulheres a morrerem vivas na fogueira. Não podemos nos calar diante dos crimes do passado, eles têm que estar no presente, temos que ter solidariedade com essas mulheres. Elas foram nossas avós, nossas mães.

De onde surgiu seu interesse em estudar a caça às bruxas?

Venho da Itália, e em italiano strega significa “bruxa”. Vem da palavra latina “stria”, que na Roma clássica era o nome de um pássaro que trazia má sorte. Se você ouvisse esse pássaro lendário, significava que alguém tinha morrido. Na língua, a ideia do pássaro deve ter se combinado à imagem da bruxa que voa. Quando eu era criança, ouvia muito a expressão “é uma strega” para se referir a uma mulher má, ou que fazia coisas consideradas erradas.

Nos anos 1970, comecei a estudar na universidade a história das mulheres no capitalismo e encontrei um pequeno panfleto de Barbara Ehrenreich e Deirdre English chamado “Bruxas encontram esposas e curandeiras”, em que falavam da caça às bruxas no século 16 etc. Eu me dei conta que a caça às bruxas não era uma coisa tão antiga quanto imaginava. Ela aconteceu no mesmo período da acumulação primitiva que Karl Marx fala no volume 1 de O capital, sobre a expropriação dos camponeses das suas terras e da colonização e conquista do México. Percebi que a caça às bruxas acompanhou o desenvolvimento do capitalismo em um mundo onde o feudalismo já estava em crise. Foi quando comecei a estudar o tema e cheguei à conclusão de que é um processo fundamental no desenvolvimento da sociedade capitalista.

Qual a importância do seu pensamento para o contexto brasileiro?

Não acho que esse tipo de história seja só o meu pensamento. Essa história é importante para o movimento feminista do mundo inteiro, pois ainda estão usando a caça às bruxas contra nós. O movimento feminista, dos anos 1970 até hoje, adotou a imagem da bruxa como um símbolo de luta. “Somos as netas de todas as bruxas que vocês não conseguiram queimar”. Acho uma boa ideia: recuperar símbolos desvalorizados pelo capitalismo para torná-los nossos. Mas também me preocupo em não esquecer os fatos históricos, não devemos esquecer que essas mulheres que foram acusadas, presas, torturadas e mortas não tinham poderes sobrenaturais, muitas eram mulheres comuns, camponesas, de comunidades indígenas. É a mulher que está lutando.

No período da caça às bruxas, na Europa, inventaram uma ferramenta de tortura, chamada witches’ bridle [rédea das bruxas], que era colocada na cabeça das mulheres. Se você tentasse falar, sua língua rasgaria. Também foi usada na população escravizada. Isso impedia as mulheres de falar, porque elas não podiam se manifestar, deviam ser submissas. Foi uma legislação introduzida no começo do desenvolvimento da sociedade capitalista para minar o poder das mulheres. A caça às mulheres foi parte de uma redefinição do papel da mulher na sociedade, particularmente a camponesa e a proletária. Devemos saber dessa história, pois nossa situação não é tão diferente.

Você estava falando sobre a apropriação da palavra “bruxa” pelo movimento feminista. É importante não carregá-la como um rótulo vazio mas ter consciência do seu significado histórico.

Sim, a bruxa não é uma figura cool. É uma imagem que podemos recuperar para a luta, não torná-la um mito. Não devemos usar a história das mulheres acusadas de serem bruxas como se fosse uma lenda. Foi uma realidade muito brutal.

Você se considera uma bruxa?

Não! Claro que não! “Bruxa” foi um termo imposto sobre as mulheres pela Igreja, o Estado, os representantes da classe capitalista, os advogados, os magistrados, os demonólogos.

E essa forma de apropriação feita pelo movimento feminista?

É uma coisa boa dizer: ‘Nós somos as descendentes das bruxas”. Porque essas mulheres eram vistas como bruxas. Ao dizer essa frase, estamos reconhecendo que temos que lutar para mudar isso. Temos que lutar para garantir que não sejamos queimadas de novo. Tentaram matar essas mulheres e sufocar essa luta, mas continuamos aqui. Agora dizer que sou uma bruxa… eu não sou uma bruxa. Porque a definição é muito negativa, é a da mulher má. Podemos brincar com a palavra, mas temos que ter muito cuidado para compreender a realidade, pois ela foi muito brutal para muitas mulheres.

E os homens acusados e mortos por bruxaria?

A maioria das pessoas acusadas de bruxaria eram mulheres, mas houve homens. Os intelectuais que escreviam, a Igreja, os magistrados disseram: “A bruxaria é a mulher”. Mesmo assim, houve homens que morreram acusados de bruxaria. Em geral, eram parentes de mulheres perseguidas, ou pessoas que trabalhavam com alguma forma de magia. Algumas vezes, padres. Do fim da Idade Média até o início do século 16, havia várias práticas consideradas mágicas. Inclusive, por exemplo, entre populações indígenas com rituais e danças. Isso foi visto como bruxaria pelos missionários e conquistadores na América Latina.

Como vê a questão da espiritualidade em torno da bruxaria?

Esse é um dos argumentos de Calibã e a bruxa: a caça às bruxas tem muitos alvos e um desses alvos é uma certa concepção de natureza comum em sociedades pré-capitalistas, que viam a natureza como a Pachamama, como um ser vivo, uma anima. Não átomos em movimento, não uma coisa mecânica, como se fosse um grande relógio. Isaac Newton começa a ver a natureza como um grande relógio. Deus dá o primeiro empurrão e depois a natureza passa a funcionar através de leis. Essa outra visão é bem diferente. As árvores, os rios, tudo têm alma. Havia tabus contra a mineração, por exemplo, pois era como colocar uma faca no corpo da sua mãe. A mineração era vista como uma violência contra o corpo da terra, desse ser vivo. Não é possível ter uma economia capitalista se a mineração é vista como um tabu. Foi por isso também que populações indígenas foram exterminadas, porque tinham um modo de vida bem diferente. O mesmo acontece na Europa: na literatura pré-capitalista, existe a ideia de que tudo tinha vida.

Você acha que essas ideias estão voltando no momento atual?

Sim, estamos recuperando uma concepção de natureza que não é mecânica. A ideia de que as árvores se comunicam entre si é um tipo de conhecimento. Comecei a falar disso no meu livro Re-enchanting the World: Feminism and the Politics of the Commons [Reencantar o mundo: feminismo e a política dos comuns, com lançamento no Brasil previsto para 2020, pela Elefante]. É um assunto sobre o qual quero falar mais no meu próximo trabalho. Estou fazendo um outro livro sobre trabalho reprodutivo e depois quero me dedicar mais a esse tema.

O próximo livro que vou publicar agora se chama In Praise of the Dancing Body [Em louvor ao corpo que dança] e fala sobre a relação do corpo e da natureza. O corpo não cresce separado da natureza. Está em interação constante com o ar, os mares, as árvores. Nós fazemos parte da natureza, do mundo animal. Vejo o capitalismo como um processo de cercamento não só da terra, mas do corpo também. É o que nos separa das outras pessoas, dos animais, da natureza e de nós mesmos.

O movimento feminista também foi muito importante porque nos ensinou a estudar nosso próprio corpo, olhar para ele. Mulheres nunca tinham olhado para a própria vagina antes. Elas tinham medo de falar do ciclo menstrual, o mais básico do nosso próprio corpo. Foi um processo de reapropriação do nosso corpo, da integração com a natureza. Os povos indígenas não se separaram da natureza. Alguns grupos têm rituais em que as pessoas incorporam poderes dos animais. Perder isso é muito empobrecedor. Temos tecnologia, mas apresentamos corpos empobrecidos.

Você soube que durante a visita da filósofa Judith Butler ao Brasil, em 2017, ela foi recebida por um grupo protestando contra a presença dela no país com cartazes com a frase “Queime a bruxa!”?

Sim, eu soube e fiquei horrorizada. Fiquei com muito medo. Ela e sua mulher, a cientista política Wendy Brown, foram agredidas no aeroporto. Esses agressores são as pessoas que estão prontas para nos queimar. São essas pessoas que estão queimando mulheres na África.

Como você vê a ascensão do conservadorismo no mundo de hoje?

Vejo como uma reação à luta. Eles precisam nos matar, porque todos sabem que o sistema é injusto. Essa ideia se espalhou. Crianças agora estão nas ruas protestando contra as mudanças climáticas. Elas se deram conta de que esse sistema está acabando com a vida na Terra. Elas sabem que o sistema não é justo com pessoas passando fome, morando nas ruas.

São Paulo é uma espécie de microcosmo do mundo todo, nesse sentido. Que tipo de sociedade é essa? Por isso que precisam dos Bolsonaros. Por isso que precisam nos matar. Talvez por isso o capitalismo esteja em crise, pela quantidade de investimentos que precisam fazer no trabalho de destruição: drones, sistemas de vigilância, esquadrões da morte, narcotráfico, o sistema prisional. Temos que ver essa ascensão como uma reação ao poder conquistado pelo povo.

Como resistir a esse movimento conservador?

É uma pergunta muito boa. Temos que protestar e continuar lutando sem garantias. Nada garante que uma grande catástrofe não vá acontecer. Mas existem duas coisas sobre o modo de organizar essa luta. Primeiro: não acredito que nenhuma luta possa ser completamente uma oposição. A luta tem que ser construtiva, não importa que luta seja. Ela precisa criar novas relações entre as pessoas. É preciso criar novas formas de se relacionar, novas formas de reprodução.

Acredito que o lado construtivo da luta precisa existir, e ela precisa tornar a vida melhor. Até mesmo pequenas melhorias. Se não, as pessoas vão sempre preferir assistir a um jogo de futebol a ir a uma reunião política ou a um protesto. Precisamos ser mais criativos, desenvolver um lado construtivo e trazer melhorias imediatas, porque a vida é terrível.

Segundo, é preciso mudar o modo como a reprodução é organizada, precisa ser mais comunal. Não acho que vamos fortalecer as lutas se continuarmos a viver separadamente. Temos que nos conectar de formas diferentes. É preciso criar novas infraestruturas: no trabalho, em casa, no cuidado com as crianças, na saúde. Elas são importantes para a luta. As relações pessoais são uma forma de resistência.

Como você vê o uso das novas tecnologias no modo de fazer política?

Eu tenho muita resistência a celebrar a tecnologia digital, como muitos fizeram com a Primavera Árabe. Se pensarmos que ela recria um comum, pode ajudar a nos reunir rapidamente na rua. Mas, depois, o que fazemos na rua? Como continuamos na rua? Tem uma certa relação que não pode ser reconstruída tecnologicamente, tem que ser construída entre as pessoas também através dos nossos corpos, das nossas presenças.

Relações tecnológicas são muito abstratas, são sujeitos sem corpos. Não resolvem o problema que precisamos resolver. Por outro lado, temos que ver não só o que pode ser feito com as tecnologias, mas como essas mesmas tecnologias estão sendo produzidas. Precisamos ver o que precisa ser feito para termos um celular, por exemplo.

Quanto sangue tem na produção dos celulares, quantas pessoas foram expropriadas para criar um computador em locais que não conhecemos. Isso tem que entrar na discussão: ao mesmo tempo que criamos comuns, como cooperação e Wikipedia, também destruímos recursos comuns ligados à terra, à água, aos animais.

Como você vê a viabilidade atual da pauta do movimento Wages for Housework, que defendeu a valorização e a remuneração do trabalho doméstico nos anos 1970?

Nós continuamos produzindo riqueza para a sociedade capitalista e não recebemos nada. É uma pauta que continua atual. Milhões de mulheres estão produzindo esse trabalho que beneficia a classe capitalista. O problema continua existindo, todo esse trabalho não remunerado que as mulheres estão fazendo. A classe capitalista não precisa pagar nada. Pelo contrário, agora nós temos que pagar por esses cuidados, tanto de crianças quanto de idosos. Você precisa contratar uma pessoa para cuidar da sua mãe se ela não consegue mais andar. Enquanto isso, eles usam nossos corpos, nosso trabalho, o produto do nosso trabalho e temos que pagar por esse outro trabalho. O problema está aí.

É inaceitável aceitar que apenas o trabalho fora da casa deva ser remunerado, que existam trabalhos que possibilitam a sua sobrevivência e outros não. Fico escandalizada que muitas socialistas feministas aceitam a premissa da desvalorização do trabalho doméstico. Se eu analisar corretamente, eu acho que esse é um trabalho do qual elas também se beneficiam. Muitas delas acabam contratando mulheres imigrantes para cuidar da casa e dos filhos, enquanto vão trabalhar na universidade. Essa é uma hipocrisia que não aceito. Elas dizem que remunerar esse trabalho só fortaleceria o capitalismo. Mas elas não pensam em abrir mão do próprio salário. Se o trabalho doméstico não for feito, o que você vai fazer? Que mulher poderia ir trabalhar fora se não tivesse alguém para fazer todas essas atividades diárias que se repetem dia após dia? Se as mulheres entrassem em greve, quem cuidaria das crianças, da casa? Os rapazes mais jovens?

Muitas das questões que aparecem em O ponto zero da revolução me fizeram lembrar O conto da aia, de Margaret Atwood. Você chegou a ler o livro?

Sim, li há muito tempo. Achei muito interessante, mas não tenho tanto entusiasmo pelo livro como muitos por aí. É interessante porque mostra que os nossos corpos não pertencem a nós mesmos. Isso é muito importante e traz a ideia feminista de que o Estado controla nossos corpos, e toda a questão da reprodução e a violência da reprodução. Nesse sentido, acho muito bom. Tenho algumas reservas com relação à ideia que associa esse tipo de controle com governos muito fascistas, quando esse controle existe tanto em governos abertamente fascistas quanto em governos “democráticos”, pois estes últimos também estão interessados em controlar os corpos das mulheres.

Esta semana foram divulgadas algumas fotos de um encontro que você participou no Brasil, em 2016, junto com Marielle Franco, que foi assassinada em 2018. Você poderia falar alguma coisa sobre esse encontro?

Sim! Claro! Era um encontro com ela e outras mulheres, não lembro das especificidades do encontro, foi há uns anos. Ela estava com outras mulheres que conheci no mesmo dia. Mas eu me lembro dessa mulher linda, cheia e vida e forte, muito forte. Eu fiquei chocada quando soube do assassinato dela. Foi muito doloroso entender o que aconteceu com ela. Tenho orgulho de tê-la conhecido, de ter tido a oportunidade de estar com ela. Venho dizendo que precisamos ter solidariedade não só com os vivos, mas também com os mortos. Para além da grande tristeza que da sua morte, acho que essa é uma possibilidade de garantir que o trabalho que ela fez, seu compromisso, sua luta, sua coragem, sua vida continuem presentes. Com a gente. E que isso seja usado para exigir justiça, que não seja silenciado e esquecido.

É o mesmo espírito que estou falando em relação à caça às bruxas. Essas mulheres ainda não receberam justiça. Um pequeno passo em direção à justiça é não deixar que isso seja esquecido. É o mesmo princípio que temos que ter com essas mulheres que foram tão importantes na nossa luta.

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