A peste negra

As autoridades lamentam a maneira como o novo coronavírus está engolindo as comunidades negras. Mas questão é: o que eles estão preparados para fazer sobre isso? Para cumprir a promessa de que vidas negras importam, é preciso mudanças sistêmicas, e não superficiais

Por Keeanga-Yamahtta Taylor
Publicado em The New Yorker

 

O velho aforismo afro-estadunidense que diz “Quando os estadunidenses brancos pegam um resfriado, os estadunidenses negros ficam com pneumonia” tem uma nova e mórbida versão: quando os estadunidenses brancos pegam o novo coronavírus, os estadunidenses negros morrem.

Milhares de estadunidenses brancos também estão morrendo com o vírus, mas o ritmo em que os afro-estadunidenses se tornam vítimas da pandemia transformou essa crise de saúde pública em uma lição objetiva sobre desigualdade racial e de classe. Segundo um relatório da Reuters, os afro-estadunidenses têm mais probabilidade de morrer com a covid-19 do que qualquer outro grupo nos Estados Unidos. Ainda é cedo, a pandemia está longe de terminar, e os dados demográficos estão incompletos, mas a visão parcial é suficiente para instigar uma reflexão sóbria sobre mais essa amarga colheita do racismo estadunidense.

O estado da Louisiana, com mais de 21 mil infecções relatadas, tem o maior número de casos de coronavírus fora do nordeste e do centro-oeste do país. Quando o governador do estado, John Bel Edwards, anunciou recentemente que começaria a fornecer dados raciais e étnicos dos que morreram, ele incluiu o sombrio reconhecimento de que os afro-estadunidenses, 33% da população da Louisiana, compreendem 70% dos mortos.

A pequena cidade de Albany, no estado da Geórgia, a 350 quilômetros ao sul de Atlanta, foi palco de um heroico conflito de direitos civis entre os moradores negros da cidade e seu chefe de polícia branco no início dos anos 1960. Agora, mais de 1,2 mil moradores de Albany testaram positivo para covid-19, e pelo menos 68 pessoas morreram. Segundo relatos anteriores, 81% dos mortos são afro-estadunidenses.

As cidades de Detroit, em Michigan, e Chicago, em Illinois, apresentam situação semelhante.

Os números refletem o fato de que o estado de saúde dos afro-estadunidenses os torna menos resistentes ao coronavírus. Diabetes, asma, doenças cardíacas e obesidade são fatores críticos e apontam para a persistência da discriminação racial, que há muito tempo aumenta a vulnerabilidade dos negros, como disse a estudiosa Ruthie Wilson Gilmore há anos.

O racismo à sombra da escravidão estadunidense diminuiu quase todas as chances de vida dos afro-estadunidenses. Os negros são mais pobres, mais subempregados e condenados a moradias precárias, e recebem cuidados de saúde de menor qualidade por causa de sua cor. Esses fatores explicam por que os afro-estadunidenses têm 60% mais chances de serem diagnosticados com diabetes do que os estadunidenses brancos, e por que as mulheres negras têm 60% mais chances de ter pressão alta do que as mulheres brancas no país.

Tais disparidades em questão de saúde são tão reveladoras da desigualdade racial quanto o encarceramento em massa ou a discriminação habitacional.

É fácil apontar simplesmente a prevalência dessas condições de saúde entre os afro-estadunidenses como a explicação mais importante para o aumento das taxas de mortalidade. Mas também é importante reconhecer que a vulnerabilidade negra é especialmente intensificada pela inaptidão contínua do governo federal em responder ao coronavírus. A crescente carnificina nos Estados Unidos de Donald Trump poderia ser em muito evitada.

Os testes de covid-19 permanecem irritantemente inconsistentes e indisponíveis. Na Filadélfia, um cientista da Universidade Drexel descobriu que, nos bairros com “menor presença de minorias éticas e com pessoas de rendas maiores”, havia mais testes disponíveis. Nos bairros com um número maior de residentes desempregados e sem seguro social, havia menos testes. Testes foram realizados seis vezes mais em bairros de alta renda do que em bairros pobres.

Testes inconsistentes, em combinação com negações constantes da Casa Branca sobre a ameaça do vírus, exacerbaram a terrível falta de preparação para essa catástrofe. Com uma coordenação mais precoce, os hospitais poderiam ter adquirido o equipamento necessário e formado uma equipe adequada, evitando potencialmente o que ocorreu. As consequências são devastadoras.

Na área de Detroit, onde a doença está aumentando, cerca de 1,5 mil trabalhadores de hospitais, incluindo quinhentos enfermeiros do Beaumont Health, o maior sistema hospitalar de Michigan, estão fora do trabalho com sintomas da covid-19. No início da crise, no Hospital Mount Sinai, em Nova York, as enfermeiras tiveram que usar sacos de lixo para sua proteção. Em todo o país, os prestadores de serviços de saúde estão sendo solicitados a racionar máscaras faciais, aumentando drasticamente o potencial de sua própria infecção e a pressão sobre os hospitais já superlotados.

A onda inicial de mortes negras foi apressada pela má conduta de Trump, mas as mortes futuras são o resultado previsível de décadas de desinvestimento e negligência institucional. Em meados de março, Toni Preckwinkle, presidente do Conselho do Condado de Cook, em Illinois, que abrange Chicago, lamentou a crise de covid-19 e proclamou: “Estamos todos juntos nisso”. Semanas depois, fechou a sala de emergência do Hospital Provident, localizado em uma parte da cidade predominantemente negra.

Preckwinkle alegou que o fechamento duraria um mês, e que a medida fora tomada em resposta a um único profissional de saúde infectado pelo vírus no hospital. Enfermeiras, médicos e outros profissionais de saúde estão testando positivo para a covid-19 em todo o país, e suas instalações não foram fechadas. Eis uma decisão que jamais teria sido tomada em nenhum dos bairros ricos e brancos da cidade em meio a uma pandemia histórica.

Enquanto isso, na cadeia do condado de Cook, 323 internos e 196 agentes penitenciários testaram positivo para a covid-19. Como resultado, as autoridades não apenas não fecharam a prisão, como também não libertaram um número significativo de presos, embora a instalação tenha a maior densidade de casos de covid-19 em Chicago.

Esses são os tipos de decisões que explicam por que, em uma mesma cidade, há uma diferença de trinta anos na expectativa de vida entre os moradores do bairro negro de Englewood e os do bairro branco de Streeterville. São apenas os exemplos mais recentes de como o racismo é o resultado final das decisões das autoridades, independentemente de suas intenções.

Preckwinkle é afro-estadunidense e presidente do Partido Democrata do Condado de Cook, mas suas decisões sobre o Hospital Provident e a Cadeia do Condado de Cook prejudicam profundamente os afro-estadunidenses de Chicago.

A rapidez com que a pandemia consumiu comunidades negras nos Estados Unidos é chocante, mas também fornece uma visão invariável da dinâmica de raça e classe que existia muito antes do surgimento do coronavírus. A conversa mais fútil no país é a discussão sobre se raça ou classe é o principal impedimento à mobilidade social afro-estadunidense. Na realidade, eles não podem ser separados um do outro. Os afro-estadunidenses estão sofrendo com essa crise não apenas por causa do racismo, mas também por causa de como a discriminação racial os vinculou à base da hierarquia de classes dos Estados Unidos.

Desde a emancipação, o racismo tem menosprezado as dificuldades econômicas das pessoas negras. Essas dificuldades são expressas pela concentração de afro-estadunidenses em empregos com baixos salários — muitos dos quais agora, em plena pandemia, são ironicamente designados como “essenciais”.

De acordo com um relatório do The New York Times, Annie Grant, uma mulher negra de 55 anos que trabalhava na fábrica de aves da Tyson Foods em Camilla, na Geórgia, contou estar sofrendo de febre e calafrios, e disse aos filhos que ela foi ordenada a voltar ao trabalho apesar de apresentar sintomas do vírus. No início de abril, ela morreu de covid-19.

Mais dois trabalhadores morreram e outros reclamaram da falta de equipamento de proteção e da dificuldade de distanciamento social, mas a fábrica se manteve aberta. (Um porta-voz da Tyson Foods disse que a empresa instituiu salvaguardas para os funcionários, incluindo “um suprimento adequado de máscaras para os trabalhadores da produção”.)

Durante um surto crescente de coronavírus nas fábricas de processamento de alimentos do país, o vice-presidente Mike Pence se dirigiu aos trabalhadores, dizendo: “Você está prestando um ótimo serviço ao povo dos Estados Unidos, e precisamos que você continue, como parte do que chamamos de infraestrutura crítica. Apareça e faça seu trabalho.”

As ameaças de fome, despejo e desemprego levam os afro-estadunidenses pobres e da classe trabalhadora a expor-se ao contágio. Menos de 20% dos afro-estadunidenses têm empregos que lhes permitem trabalhar em casa. Os trabalhadores negros estão concentrados em empregos públicos, no transporte de massa, na assistência médica domiciliar, no varejo e nos serviços, onde o distanciamento social é praticamente impossível.

E há uma concentração de afro-estadunidenses em instituições nas quais o distanciamento social é impossível, incluindo prisões e abrigos. Os afro-estadunidenses compõem a maioria dos encarcerados e dos sem-teto. 46% dos afro-estadunidenses consideram a covid-19 uma “grande ameaça” à sua saúde, e, no entanto, raça e classe se combinam para colocar em perigo pessoas negras. Esses números representam a crise instalada dentro da pandemia.

A pobreza, por sua vez, reforça suposições ideológicas sobre raça. Quando os bairros negros da classe trabalhadora têm altos índices de moradias precárias e manutenção deficiente, e as comunidades negras sofrem com dietas pouco nutritivas e obesidade generalizada, essas características se combinam com a raça. A racionalização da pobreza ajuda a tirar o foco dos fatores sistêmicos que fundamentam as desigualdades raciais e econômicas.

Em vez disso, há muita atenção no diagnóstico e na recuperação de afro-estadunidenses supostamente prejudicados. Em 10 de abril, o cirurgião-geral de Trump, Jerome Adams, que é negro, instruiu as comunidades afro-estadunidenses e latinas a evitar álcool, tabaco e drogas durante a pandemia. Em uma ode familiar paternalista, Adams aconselhou: “Precisamos que você faça isso, se não for por si mesmo, e depois pela sua abuela [avó]. Faça isso pelo seu avô. Faça isso pela sua mãe. Faça isso pelo seu papai”.

Essas observações foram um lembrete de como o foco nas comorbidades que agravam a covid-19 — por exemplo, diabetes e hipertensão — pode ser facilmente transformado em discussões sobre os hábitos alimentares e físicos da classe trabalhadora negra. Mas essa é uma discussão irresponsável e unilateral, que ignora os “desertos alimentares” [bairros em que é muito difícil encontrar alimentos saudáveis à venda], a redução dos food stamps [cupons de alimentos] e a depressão e alienação que cobrem os bairros negros pobres e da classe trabalhadora.

Não é a falta de força de vontade que está alimentando os efeitos mortais da pandemia nas comunidades negras. E o impacto desproporcional do vírus não é causado por uma barreira linguística que exige que os afro-estadunidenses sejam tratados como pessoas que não entendem o que se diz, como fez o cirurgião-chefe do presidente.

As observações de Adams também foram um lembrete de que, mesmo quando a pobreza não é o problema, o racismo ou suposições raciais sobre afro-estadunidenses influenciam as maneiras pelas quais eles são tratados no setor de saúde. Não é apenas que as mulheres negras são três vezes mais propensas a morrer no parto do que as mulheres brancas, mas as taxas de mortalidade de mulheres negras com educação superior são mais altas do que as de mulheres brancas com apenas um diploma do ensino médio.

Os estereótipos dos afro-estadunidenses como gordos e preguiçosos, despreocupados e imprudentes, impetuosos, irresponsáveis e, por fim, gente que não merece nada, são absorvidos na consciência do público em geral, inclusive entre os prestadores de serviços de saúde. Esses estereótipos estão enraizados em percepções errôneas sobre a vida dos negros pobres e da classe trabalhadora. Mas, como a raça é vista em nossa sociedade como uma questão biológica, inclusive pelos médicos, elas são consideradas características herdadas por todos os negros.

Em uma série de estudos publicados em 2017, os pesquisadores descobriram “uma preferência implícita por pacientes brancos, especialmente entre médicos brancos”. Outra pesquisa descobriu que os médicos acreditavam que pacientes brancos eram mais cooperativos do que pacientes afro-estadunidenses.

Um levantamento de 2016 feita com estudantes de medicina e residentes descobriu que quase metade deles acredita que existem diferenças biológicas entre corpos negros e corpos brancos — incluindo a falsa noção de que as terminações nervosas dos negros são menos sensíveis do que as dos brancos. Essas descobertas podem fornecer algumas dicas sobre um estudo mais recente, que mostrou que pacientes negros eram 40% menos propensos a receber medicamentos para aliviar a dor aguda.

A discriminação contra pacientes afro-estadunidenses está tão incorporada às práticas de saúde nos Estados Unidos que uma pesquisa nacional descobriu que, mesmo quando hospitais e seguradoras contavam com um algoritmo para gerenciar a administração de cuidados, os pacientes afro-estadunidenses recebiam, em média, o equivalente a 1,8 mil dólares a menos por ano de cuidados do que pacientes brancos com as mesmas condições de saúde.

Ou seja, os afro-estadunidenses tinham que estar mais doentes que os brancos antes de serem encaminhados para uma ajuda mais especializada. Não é apenas a pobreza que leva a erros de diagnóstico e a cuidados inconsistentes; isso também é provocado pelo pressuposto profundamente arraigado de que corpos negros são danificados e, portanto, descartáveis.

Não são apenas as pessoas nomeadas por Trump que fazem declarações condescendentes ou ignorantes. Até mesmo um liberal convicto como o prefeito de Chicago, Lori Lightfoot, não é imune a acreditar que os negros são cúmplices do mau atendimento de saúde que recebem. Em resposta à reportagem sobre mortes negras pelo coronavírus, Lightfoot disse: “Não seremos capazes de apagar décadas de disparidades na saúde em alguns dias ou uma semana, mas precisamos que as pessoas nessas comunidades saibam que existem coisas que eles podem fazer — existem ferramentas à sua disposição que eles podem usar para ajudar a si mesmos.”

Quais são as “ferramentas” à disposição das comunidades negras de Chicago que lhes permitiriam “ajudar a si mesmas” na crise de covid-19? Lightfoot não deu detalhes, mas sua declaração usa de uma linguagem carregada que transfere a culpa pelas deficiências no atendimento de saúde dos negros para os bairros negros segregados de Chicago.

Os comentários de Lightfoot subestimam a dificuldade de obter boa saúde e bem-estar, além de combater as forças do subemprego, despejos e violência policial — os quais definem grande parte da vida negra da classe trabalhadora em Chicago. A taxa geral de desemprego para jovens negros e mulheres jovens negras em Chicago é de 37%, em comparação com 6% para seus pares brancos. Certamente é mais fácil promover essas misteriosas “ferramentas” do que enfrentar décadas de desinvestimento e desemprego na cidade — que é o que realmente mudaria essas circunstâncias.

Há uma outra consequência de considerar a crise do coronavírus um desdobramento das escolhas pessoais dos afro-estadunidenses: a suposição de que, se os afro-estadunidenses mudarem seu comportamento, eles poderão se juntar às pessoas saudáveis e ignorar as questões sistêmicas que criaram uma crise geral de saúde, bem-estar e acesso a cuidados médicos nos Estados Unidos.

O problema enfrentado pelos negros não é apenas não terem acesso a cuidados de saúde adequados — o que seria resolvido se eles fossem incluídos nesse sistema. Mas pedir simplesmente “acesso igualitário” pode reforçar a percepção de que o problema é apenas de exclusão, quando o problema mais profundo é a própria sociedade estadunidense.

Quando James Baldwin, em seu ardente livro de 1963, Da próxima vez, o fogo, colocou a questão sobre se os afro-estadunidenses deveriam integrar-se à “casa em chamas” dos Estados Unidos, ele argumentou que a pergunta exigia um olhar mais profundo à sociedade estadunidense. Baldwin escreveu:

“Em geral, os brancos não podem ser tomados como modelos de vida. Em vez disso, o homem branco precisa desesperadamente de novos padrões, o que o libertará de sua confusão e o colocará mais uma vez em frutuosa comunhão com as profundezas de seu próprio ser. E repito: o preço da libertação do povo branco é a libertação dos negros — a libertação total, nas cidades, perante a lei e na mente.”

O racismo significa que a maioria dos afro-estadunidenses sofre mais do que a maioria dos estadunidenses brancos. Mas, nos últimos anos, houve vários relatórios mostrando que a expectativa de vida da pessoa branca média diminuiu. Isso normalmente não acontece no mundo desenvolvido. Mas, neste país, esse fenômeno é impulsionado por alcoolismo, abuso de opiáceos e suicídio. Longe do privilégio branco, esse é o pathos branco.

O acesso desigual aos cuidados de saúde pode ser importante no contexto imediato da pandemia, mas isso por si só não nos diz muito sobre a crise geral com os serviços de saúde com fins lucrativos nos Estados Unidos. Também não nos diz muito sobre as grandes crises sociais que sustentam os problemas específicos de saúde de afro-estadunidenses e estadunidenses brancos.

Um vislumbre dessas crises maiores foi fornecido pelas Nações Unidas em 2017, quando seus pesquisadores entrevistaram pessoas em várias cidades sobre a pobreza. O relatório concluiu que “os Estados Unidos já lideram o mundo desenvolvido em desigualdade de renda e riqueza, e agora estão avançando a todo vapor para se tornarem ainda mais desiguais. […] Altas taxas de pobreza de crianças e jovens perpetuam a transmissão intergeracional da pobreza de maneira muito eficaz e garantem que o ‘sonho americano’ esteja se tornando rapidamente a ilusão americana.”

Os Estados Unidos têm as maiores taxas de mortalidade juvenil e infantil entre os países ricos. Os cidadãos dos Estados Unidos vivem vidas “mais curtas e doentes” do que as de outras nações democráticas prósperas.

Quando funcionários públicos lamentam a maneira como a covid-19 está engolindo as comunidades negras, a questão maior é: o que eles estão preparados para fazer a respeito? A resposta imediata deve ser a rápida expansão do Medicaid e Medicare. Mas o acesso aos cuidados de saúde é apenas um pequeno pedaço da dinâmica que compromete a saúde dos afro-estadunidenses.

As boas práticas de cuidados de saúde também devem incluir alívio da ameaça e do estresse dos despejos. As mulheres negras constituem cerca de 44% das que são despejadas de suas casas nas áreas urbanas; como resultado, sofrem desproporcionalmente de depressão e, em casos extremos, cometem suicídio. Um bom atendimento de saúde significa empregos com salários mais altos que permitem que as mulheres negras e suas famílias se preocupem menos com as contas mensais e os custos de assistência e educação infantil. As mulheres negras da Louisiana, o estado em que os afro-estadunidenses enfrentam as maiores taxas de mortalidade por covid-19, ganham 47 centavos a cada dólar recebido por homens brancos.

Periodicamente, enfrentamos crises nacionais que nos forçam a olhar para a pobreza e a desigualdade que existem ao nosso redor. Ouvimos os que estão no poder, incluindo funcionários eleitos, discutirem sem fôlego as condições vergonhosas que produzem esses resultados, mas eles prometem pouco em termos de políticas específicas e ações concretas para revertê-los.

Trump diz que as taxas mais altas de morte por coronavírus entre negros são “um tremendo desafio. […] Queremos encontrar o motivo disso”. Anthony Fauci, diretor do Instituto Nacional de Alergia e Doenças Infecciosas, que acompanha Trump a suas conferências de imprensa, forneceu uma explicação que incluía problemas de saúde preexistentes, mas concluiu: “Não há nada que possamos fazer a respeito disso agora, exceto prestar o melhor atendimento possível e evitar complicações.”

Expressões de preocupação, votos de felicidades e promessas de “uma resposta multicamada muito robusta” soam bem em entrevistas coletivas. Porém, muitas autoridades eleitas que nos dizem que são bem-intencionadas se mostram tão avessas a defender os gastos necessários para reconstruir o setor público que são incapazes de chegar a soluções reais.

Em meio a essa pandemia crescente, o prefeito da Filadélfia, Jim Kenney, um democrata, anunciou recentemente uma rodada de cortes no orçamento e redução de serviços, dizendo: “Não vai ser fácil, nem agradável, […] mas, no final, precisamos de um orçamento equilibrado.”

Filadélfia é a mais pobre das grandes cidades do país, onde os afro-estadunidenses estão sofrendo mais com o surto de covid-19. E, exatamente no momento em que muitos estão destacando as maneiras pelas quais a desigualdade e nossa infraestrutura cívica estão falhando com o público — especialmente, com o público negro —, o prefeito anunciou cortes orçamentários “desagradáveis”.

Não é apenas a Filadélfia. Por décadas, em todo o país, cidades grandes e pequenas estão comprometidas com um modelo de desenvolvimento que prioriza atrair empresas privadas com promessas de redução de impostos, ao mesmo tempo que negligencia o investimento pesado em instituições públicas. Os hospitais públicos foram fechados, as habitações públicas foram sucateadas ou abandonadas, as escolas públicas deixaram de receber investimentos e as clínicas de saúde pública foram fechadas. Mesmo quando as horríveis consequências dessas escolhas políticas durante a epidemia de covid-19 aparecem nas notícias de todo o país, as autoridades não têm planos significativos de mudar de rumo.

Somente o conhecimento sobre essas disparidades na saúde e o racismo em que estão enraizadas não será suficiente para inspirar a ação de autoridades eleitas ou entidades governamentais. Quando o furacão Katrina expôs o brutal racismo da Costa do Golfo, não levou a um novo regime de investimentos robustos no setor público ou a uma infusão de empregos bem-remunerados para tirar os afro-estadunidenses da pobreza.

Em vez disso, os abutres corporativos e seus facilitadores públicos forçaram o fechamento de quase todas as escolas públicas da cidade, que foram “leiloadas”. O Conselho de Nova Orleans aprovou por unanimidade a demolição de moradias públicas que sequer foram atingidas pelo furacão. Dezenas de milhares de moradores negros receberam passagens só de ida para fora da cidade, e depois foram depreciativamente chamados de “refugiados” em seu próprio país.

A menos que os gastos públicos sejam restaurados e combinados com o acesso a empregos bem remunerados, com cuidados de saúde preventivos e de emergência e com moradias seguras e acessíveis, é difícil levar a sério as expressões de indignação com a pobreza e o racismo.

No mês passado, vimos que é possível que governos locais e nacionais ajam de maneira a proteger as pessoas. A Casa Branca suspendeu os juros e a cobrança dos pagamentos federais de empréstimos para estudantes até setembro, e o Departamento de Habitação e Desenvolvimento Urbano declarou uma moratória sobre execuções hipotecárias e despejos de hipotecas seguradas pelo governo. Algumas cidades e estados suspenderam os despejos de propriedades alugadas e os municípios de todo o país libertaram milhares de pessoas das prisões. As autoridades locais prometeram não fazer prisões por delitos de contravenção. Em Detroit, as autoridades prometeram parar de desligar a água das pessoas quando não puderem pagar suas contas.

Se todas essas ações são possíveis em uma emergência nacional, porque acreditamos que elas mitigarão a vulnerabilidade das pessoas a doenças e à morte, por que isso não pode sempre ser o padrão? Afinal, quando é um bom momento para desligar o acesso de alguém à água potável? Não podemos continuar censurando as crescentes taxas de mortalidade negra se não nos preparamos para mudar nossos fracassados sistemas políticos e econômicos.

A dificuldade em tomar essas decisões não se refere apenas à falta de vontade política. Em 1968, durante outro período de convulsão social, Martin Luther King Jr. explicou que o poder do movimento negro reside não apenas em sua capacidade de lutar pelos direitos dos afro-estadunidenses, mas em sua revelação das “falhas inter-relacionadas” da sociedade estadunidense, incluindo “racismo, pobreza, militarismo e materialismo”. A “revolução negra”, continuou King, tem o poder de expor “os males que estão profundamente enraizados em toda a estrutura de nossa sociedade. Revela falhas sistêmicas e não superficiais, e sugere que a reconstrução radical da própria sociedade é o verdadeiro problema a ser enfrentado.”

Mesmo quando as falhas em nossa sociedade são tão fáceis de apontar, resolvê-las entra em conflito imediato com as premissas muito básicas de governança no país hoje. Reparar os danos profundos, históricos e contínuos causados às pessoas negras exigirá transformações profundas e constantes. Isso era verdade quando King escreveu essas palavras, há mais de meio século, e nunca foi tão verdadeiro quanto é hoje. Para cumprir a promessa de que vidas negras importam, os Estados Unidos precisam mudar de maneira sistêmica, e não superficial. ///

 

Keeanga-Yamahtta Taylor é professora de estudos afro-estadunidenses na Universidade de Princeton e autora de From #BlackLivesMatter to Black Liberation, que em breve será publicado no Brasil pela Elefante.

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