Por Breno Castro Alves
Newsletter da Elefante

 

Em História social do LSD no Brasil, o historiador e jornalista Júlio Delmanto mergulha na controversa trajetória do ácido lisérgico nestas terras para, do fundo de uma pesquisa repleta de arte e repressão, retornar com quinze doses de um papelzinho alaranjado classe A: o flagrante que a polícia deu em Antonio Peticov em 1970, ato inaugural do primeiro processo por uso e tráfico de LSD no país.

É a partir dessas miligramas de dietilamida do ácido lisérgico que Júlio radiografa as veias por onde corre o psicodélico em nossa cultura. Desde a cosmogônica viagem inicial do químico Albert Hofmann, que chapou pedalando sua bicicletinha na Suíça; passando por Timothy Leary nos Estados Unidos e a primeira pesquisa da Universidade Federal de São Paulo, encontrando Gal Costa em Ipanema, a contracultura, os beats, a Tropicália e, acima de tudo, o jovem pintor Peticov em cana.

Porque seu processo tem profusão de detalhes documentados pela burocracia da ditadura. Quando a polícia meteu o pé na porta do seu apartamento, Antonio (Toninho, para os íntimos) Peticov morava na Avanhandava, rua do que hoje é considerado o centro chique decadente de São Paulo, localizada ao redor de tradicionais teatros e cantinas chiques do Bixiga e do Baixo Augusta.

O investigador do caso, um talvez miliciano quarentão e branco natural de Caxias, no Rio, com o vulgo de Russinho, depôs sobre “reuniões suspeitas num apartamento da cidade, onde um grupo de artistas e hippies, jovens com roupas de fantasia, cabelos compridos, costumes e comportamento estranho passavam horas juntos”. À justiça, Russinho disse que “passou a investigar o que lá ocorria e, pelo barulho e comportamento inusitado do grupo, passou a suspeitar que o mesmo consumia substância entorpecente”.

Assim o investigador descreveu Peticov e todos os nossos amigos em seus vinte e poucos anos — sem falar daqueles doidos resistentes que persistem com o comportamento inusitado por décadas, não é? Sem citar nomes, você sabe de quem estamos falando. [Eu, que estou editando este texto, e que não sou a mesma pessoa que o escreveu, não faço ideia de quem seja. Ou talvez faça.]

Peticov e seus amigos eram tão incríveis que o músico Carlos Alberto de Araújo, 23 anos, morador da Rua Jaguaribe, em seu depoimento tentou impressionantemente convencer os canas de que tomar ácido é algo positivo, que curou sua vida e talvez possa curar vocês também. Atenção à poesia registrada pelos escrivães do regime militar:

“Que o declarante sentiu amor por todas as pessoas, mais consciência do belo, tomou consciência de sua posição em relação a si mesmo e à vida; que, quanto ao seu trabalho, houve uma mudança total, pois agora enxerga totalmente as coisas; que obteve mais facilidade em se adaptar a qualquer meio que frequente.”

E mais: “Após o efeito do ácido tudo se tornou lembranças, contudo essas lembranças se tornaram parte integrante de si mesmo, fazendo com que usasse essa experiência durante a vida; pois era uma pessoa bastante neurótica e agora toda a agressividade que sentia antes da experiência foi morta; sente o desejo e procura como compreender todas as coisas”.

 

Anos de chumbo

História social do LSD no Brasil pontua o artigo científico mais antigo do Brasil sobre o assunto, “Investigações com a dietilamida do ácido lisérgico”, escrito por Eustachio Portella em 1954. A obra está no arquivo do Centro Brasileiro de Informações sobre Drogas (Cebrid), instituição de pesquisa vinculada à já citada Universidade Federal de São Paulo.

Os anos seguintes viram mais de mil artigos sobre a substância publicados pelo mundo, comprovando a relação positiva entre LSD e psicoterapia. Fora da academia, um dos pontos altos dessa geração foram os Acid Tests, testes de ácido, eventos que combinavam música experimental, projeções, intervenções e distribuição de LSD puríssimo. O escritor Tom Wolfe, expoente do jornalismo literário e autor de O teste do ácido do refresco elétrico, marcou que esses encontros “constituíam um desses ultrajes, um desses escândalos que criam um novo estilo ou uma nova visão de mundo”. [Dica do editor: ouçam Grateful Dead, banda que tocava por horas e horas durantes essas sessões.]

Foi demais para os caretas, que iniciaram a proibição em 1966. Tim Leary, pesquisador de Harvard e PhD em LSD, concorreu ao governo do rico estado da Califórnia, nos Estados Unidos, com chances reais de vitória. Foi preso por porte de maconha. Depois, teve que fugir do país, refugiando da Argélia com alguns líderes dos Panteras Negras, com quem teve desavenças.

O Brasil macaqueou os gringos (só pra variar) e endureceu. Gil, o Gilberto, evidentemente um dos maiores e mais lúcidos filhos desta nação, foi preso em Florianópolis e internado em sanatório por porte de maconha. Quantos outros milhares menos famosos e mais mortos que Gil nos deixa essa política estabelecida por Washington e replicada em toda a América Latina chamada “guerra às drogas”? Quase sempre negros, ou mulatos, ou quase brancos, quase negros de tão pobres.

Além das vidas, essa política tacanha também censurou décadas de pesquisa e expansão de consciências. Aceleramos dos anos 1970 para 2014, para este artigo da revista Scientific American, uma das principais publicações do mundo, voz do mainstream científico, nada rebelde, defendendo abertamente a liberação da pesquisa com psicoativos. Aponta o potencial desperdiçado e a ineficácia das drogas disponíveis, já que os antidepressivos ainda possuem efeitos colaterais semelhantes aos de sua primeira geração, nos anos 1950.

O editorial foi um dos pontapés da atual Renascença Psicodélica — que merece maiúsculas, ainda mais em tempos de obscurantismo bolsolavista terraplanista. As barreiras contra as pesquisas foram caindo e os resultados, aparecendo. Sidarta Ribeiro, neurocientista e professor do Instituto do Cérebro da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, descreve parte da Renascença em um texto de 2017, no qual relata o crescimento acelerado do MAPS, congresso internacional que pesquisa psicodélicos. O público do evento se multiplicou por dez entre 2011 e 2017. As fundações e a grana grossa também já estavam ali.

História social do LSD no Brasil é um dos representantes dessa Renascença, segundo o próprio Sidarta, que escreveu um belo texto para a orelha do livro, que é fruto do doutorado de Júlio Delmanto no Departamento de História da Universidade de São Paulo. Nos últimos dez anos, o pesquisador viveu a evolução do campo, que hoje é maior e mais respeitado.

Antes de ser pesquisador, Júlio é ativista. Participante ativo da Marcha da Maconha em São Paulo, identifica a resistência de esquerda sobre as drogas, constatação que culminou em seu primeiro livro, Camaradas caretas, publicado pela editora Alameda. O artigo de Sidarta, mencionado há pouco, foi publicado originalmente na revista Mente e Cérebro, mas nós fizemos questão de compartilhar a página do Desentorpecer a Razão, o DAR, coletivo antiproibicionista do qual Júlio Delmanto é cofundador.

E antes de tudo isso, Júlio é usuário. Com sorrisinho sacana, lhe perguntamos: Tomou alguma coisa pra escrever esse trabalho? Ele garante que a forma acadêmica, metodológica e burocrática, não combina com a amplidão do LSD. “Mas eu diria sem problemas que o que me acompanhou e acompanha foi a cannabis mesmo, bastante útil na composição do trabalho. O LSD ajuda na manutenção das condições normais da minha psique, nos insights de longo prazo, nas alternativas macro, mas não teve uma influência direta nessa escrita — ou ela muito provavelmente estaria bem melhor.”

E então fechamos com a imensidão de portas que podem ser abertas por essa dietilamida. Não cabe aqui um debate neuroquímico de o que a molécula faz com o cérebro, apenas a constatação de que é possível presenciar o universo se desdobrando sobre si mesmo ou sobre aquela casca de banana. De alguma forma, é possível ligar o fio do azul com o fio do molhado e efetivamente aquele céu claro sem nuvens se torna molhado quando entra em contato com sua pele, que sorri, afinal está um calor das queimadas e se molhar enquanto há água é um refresco.

Imagine (ou se lembre, quem sabe) o que tudo isso representa para a pesquisa artística e/ou científica. [História social do LSD no Brasil não esquece de lembrar que a cultura brasileira, sobretudo a MPB, seria outra se a substância não tivesse desembarcado nestas terras.] De repente, conexões improváveis se manifestam e as relações ocultas se fazem presentes ao mesmo tempo que o ego dissolve e cada um de nós sabe que é parte do cosmos, do todo. [Entender-se parte da natureza não seria, afinal, o começo da solução dos todos os problemas causados pelo progresso e pelo desenvolvimento?]

Certa vez, do alto de uma trip homérica, um poeta anônimo amanheceu Buda com o seguinte diálogo:

— Então quer dizer que eu e vocês somos o mesmo e todas as coisas somos nós?
— O quê? Hahahahaha! — reagiram os amigos chapados.
— Se nós somos os mesmos, essa risada também sou quem estou dando?
— O quê? Hahahahaha!
— Gostei, vou pegar vocês pra mim.

E pegou, rindo.

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